sábado, 29 de dezembro de 2007

Feliz 2008

Quando a luz é amena o corpo dela flauta, as coisas flutuam...


Há os que não crêem em Deus. Estes se crêem certos. Há os deístas, estes estão cegos, e há os que se fazem surdos, estes se dizem céticos. Diga o que quiserem, desde que continuem fazendo Deus existir, porque aquele que O mata dentro de si, mata também a sua imaginação, o seu desejo de sonhar para dentro, de imergir, de transcender... Quando acordo pela manhã, ao abrir os olhos, a primeira coisa que vejo é Deus. Um centésimo de segundo antes de dormir, antes de cerrar os olhos, é Deus a última luz que me invade. Já dormindo, Deus é a minha iluminada escuridão.

Quem não tem Deus tem o quê? O verso, o verbo, o vernáculo? E isso é o quê? Deus, além de transcendente é imanente. Ter Deus já nasce consigo, como nas aranhas os tentáculos. Minha filha, que não é boba e tem somente 3 anos e meio, acha plausível a possibilidade de Deus e o vê com bons olhos. É muito sofisticado uma criança não questionar onde está este Deus que todo mundo fala e ninguém o vê....


Desculpe, caríssimo. Eu não queria falar de Deus, mas de uma Deusa...


Me parece que com a morte de Benazir Bhutto, Bin Laden derruba a terceira torre estadunidense. Quem tem olhos pra ver que veja. No mês passado fui ao festival internacional de bonecos, lindo espetáculo. Me faz pensar na morte de Benazir Bhutto. Dá mesmo para imaginar que o sentimento, a voz, os movimentos... que tudo isso venha de dentro do títere, mas a manopla branca está sempre ali, manipulando...


Então, mas eu queria falar de uma Deusa...

Dom Cappio fez o seu teatro, Sabatella o fez com naturalidade, naturalmente. A Igreja voltou, descaradamente, a interferir na vida política dos países, em quase todo o mundo. Dão ordem em políticos, interferem em assuntos médicos, científicos, tecnológicos... Querem ser a voz única dos rios, dos embriões, até mesmo das céluas, das céluas-tronco! E sempre usando o teatro. A tragédia da Paixão de Cristo tem todos os elementos do teatro grego, da tragédia grega... Quem tem ouvido para ouvir que ouça. Lembro-me que numa escola francesa, em França, uma menina foi proibida de entrar usando o véu, porque ele seria uma apologia à religião que a infante cultua. Como se as francesinhas não se vestissem como cristãs. Até o discurso de desvestir o véu já é desvelar essa hipocrisia...


Como eu ia dizendo, eu tenho uma amiga...


Ah, ia me esquecendo do holocausto! O maior genocídio da história da humanidade. O número é exato, seis milhões de judeus! Eu gostaria de lembrar que o tráfico negreiro matou 75 milhões de homens pretos. Antes dos europeus assassinos quase exterminarem a população indígena no continente, havia aproximadamente 100 milhões de índios na América. Só no território que viria a ser o Brasil, esse número chegava 5 milhões de nativos. Mas neste mundo cão, filha, só faz propaganda quem tem dinheiro!


Jura que em 2008 você não vai mais acreditar que o holocausto foi o maior genocídio da história da humanidade? E que os pretos africanos e os indígenas sul americanos só não estão nos cinemas em meio à explosões de automóveis, tiros, gelo-seco, e merchandising por falta de grana. E não estão nos livros escolares por falta de interesse.



Minha amiga se chama Olívia. Ela é linda. Feliz 2008 pra ela. E pra você também.


Lelê Teles


quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

aniversário de Marla, feliz idades

Marla e Bel, duas lindas criaturas

Tem muita gente desocupada de muito por fazer e outras entretidas em não fazeres. E tu cheia de deliciosas querências, de majestosos quereres. Quando ainda haviam Guapuruvús em nossas manhãs, ouviam-se os gerândios mudos que en-cantam em suas amórficas edificações de palavras. Os versos que tu semeias, a pá-lavra! Porque Imhotep, no Egito, e Pacal, na América Central, ergueram as mais majestosas e retumbantes cidades para as mais majestosas civilizações; tudo feito na pedra, de pedra. Mas tu ergues um continente cheio de águas somente usando a palavra como matéria prima. A matéria etérea. E forja uma nova e majestosa incivilização. Sempre você sorri, mas nem sempre você só ri. É feito de rios o teu sorriso, de margens, de matas ciliares, de cílios e de ares. O teu sorriso também é repleto de lágrimas, como são a felicidade dos poetas e a alegria dos profetas. E eu sou cheio de ti, de ti sou pleno. Tenho saudade das manhãs manhosas em que tínhamos Guapuruvús!





Sorria sempre; como o sol que gargalha lágrimas em chamas, chamuscando toda a nossa miríade de interrogações cósmicas, as nossas divagações estelares. Galileu ouviu o universo gargalhar. Se tiver que chorar, não se reprima, chore muito e transbordante, como um mar revolto a ressaquear nas pedras duras e frias, britando a sua milenar indiferença. Na hora de amar, grite. E se tiver que chingar: esparre, espirre, esporre e espurre!





Lelê Teles, Brasília

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

o arrebol dos subúrbios



O sol se escondia por trás da descor de poeira suja que emoldurava o infinito. O gorjear ficava mais calmo nas ermas paragens. As frondes sacolejavam lentas e sonolentas, a abanar insetos, como cavalo crina a cauda. Cachorro - que é bicho preguiçoso -, escorava no umbral de uma árvore e desarvorava a vida alheia de inveja canina e ferina angústia. Se chovesse teria lama, mas é seco e o ar desventa, poeira sobe sob tudo e sobre troncos. Uma estrela pontilha luz no firmamento; afirmam que se chama Dalva, não me meto a nomear estrelas, um astro não se nomeia assim como se desnomeia ministros, o astro é luz e luz em si já é palavra. No fim era o desverbo.



No descampado, mininos seminus desbrincam com bola de meia, noutro canto mininos de grude deslindam bolas de gude. No bar, os cachaceiros cantam goelas quentes e canas frias. Canelas finas desfilam por toda a paisagem. Esquálida gente emagrece o horizonte. As pipas se soltam sozinhas, gritos de gente chamam gente a gritar. Na varanda, um morcego avoa e aranha ri. Papagaio imita gente e pronuncia águas. Cavalos também habitam, ratos são animais domésticos, tem nome e apelido. Muriçoca vira brinco e baratas voam céu adentro. Nas frechas, fendas, frincas e brechas mulher nua se banha de vento e a gente se ventila a curiar. Há desejo em tudo o que tá vivo, vontade só há no que não morreu, esperança é palavra que não se cala; mininas vão sozinhas de mãos dadas.



Na ruazinha, um poste se enche de luz e escurece as sombras. As antenas estão antenadas no mundo lá fora, umas são improviso e escultura, outras são fabricadas e desfeiam tudo. Quem não olha pro chão pisa em bosta. Quem olha de mais vê o que não quer. Besouro tem olho de anu e voa sem que ciência nenhuma o explique. Dizem que a física do besouro é que está errada, como se besouro inventasse física. Besouro nem faz ginástica.



A rã rima com raiva e relva ri-se de rotina réstia. Retinas retêm rotos remoeres. Dizem que em céu cobra não avoa; vovô descorda, vovô foi cobra e hoje é cabra avoador. Quem tem dente que diga, como se faz pra morder o vento quando ele passa assoviando de viés? Diz que flauta, disso não sei. Qualquer paisagem acolhe gente triste, os sorrisos enfeiam a paisagem, paisagens não têm dentes, paisagens se abrem banguelas por mundos inteiros. Queria ter a paciência das lesmas e andar devagar a foder as pedras, como dizia Manoel de Barros. Lânguidas e gosmentas criaturas desfilam nas pedras virgens. Borboleta azul roça asas no aflato da tarde. O arrebol, que posterioriza o lusco-fusco, grada cores e aquarela tudo. É fim de tarde.




Lelê Teles, Brasília


quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

carta sem remetente


Foto: Paulo César

Gotas de som compõem uma canção de chuva. Veja meu amor, que as coisas não precisavam ser tão tristes. Mas meu coração aperta até quando danço. Porque você me garantiu que longe era um lugar que não existia e agora aqui tudo é espera e fome.Tudo é sede de alguma voz e de palavras de encontro.É que esse silêncio denso não me explica distâncias... ou talvez seja ele que nos afaste ao ponto de nem haver mais eco.



Sabe meu amor, ontem eu lembrei de você quando a previsão era de tempestades e as temperaturas ainda estavam tão altas.O ar pesado e o calor ofensivo. E havia um poema oco e insônia e falta de abraço.


(Minha poesia anda miserável e minhas cartas sem remetentes).


E quando pensei que pudesse começar a me divertir, todos foram embora da festa: eu fiquei sozinha olhando a desordem.


Sabe meu amor, sobrou apenas o meu copo vazio, taças quebradas e restos que não se aproveita mais. E depois, essas gotas de chuva que pretendem compor nenhuma canção.


Meu amor, se longe é um lugar que não existe como você me explica essa distância?

*


Texto de Marla de Queiroz:
http://www.doidademarluquices.blogspot.com/



Marla é a minha poeta favorita, ela tem estilo, substância, conteúdo, coerência, coesão e precisão. Amo os seus versos e `as vezes eles me cutucam forte o coração, como agora. Tá pra nascer uma poeta que me emocione mais do que ELA.

sábado, 8 de dezembro de 2007

gorete



Tuuuuuuuummm! Bateu!


Se você morresse hoje, o que você deixaria? Pergunta-me Gorete, que acaba de chegar e se deita conosco na grama, sob um pé de limão, a atirar cascas. Eu, pensaroso, olhar em vento e névoa nuvem, a divagar, respondo ainda longe: Deixaria este sol morrente, a lua nascente e este vento frio e morno que nos arrefece agora. Deixaria tu e ele, esta casa, estas folhas, aquelas galinhas lépidas. Deixaria o córrego que corre ali, deixaria, enfim, tudo o que não posso levar. E de ti, o que deixarias? Gorete tentando revolver-me. Tudo isso de que te falei agora, Gorete! Mas tudo isso fica, mesmo que você não morra. O sol, o céu, aquele barquinho de papel... E tu, e de ti?- Gorete você só enumerou substantivos. Eu disse sol morrente, lua nascente e vento morno. Eu os fiz assim, eu os quis assim, e neste instante eles são minhas criaturas e eu as deixo pra ti.


Gorete segue uma pomba com os olhos. As asas se esfregando no vento. A pluma se solta, flutua e pousa. A aranha ri. A rua corre para o rio e o Rio emite luz, reflete bondes, refrea gáveas, refrata cristos e corcovados. O vulto volta e vira vulva; a vara vela, a vida evola, a voz vacila... Gorete chora.


Chorando por quê, Gorete? Você gosta de mim, Fabão? Gorete, eu te adoro. Mas, só se adora a Deus, Fábio. Deus está em todas as coisas, meu anjo. Eu adoro o Deus que vejo em ti. Teu sorriso, tua nuca, tuas tranças, tuas axilas, a curva fofa da tua orelha... Vou te contar uma história, Fábio. Vai contando, Gorete... Antes me responde. Quando você pensa no céu, em galáxias, planetas... Você pensa em vida? Você vê vida?



Gorete, já sonhou com alguém que já está morto? Humm, Já. E este alguém tava vivo no sonho?- Huuummm... Tava!- Toda vez que alguém sonhar com um ente que morreu, no sonho este vai estar vivo. Acenando, nadando num pedaço de poço, voando contigo num espaço vazio. Mas vivo. Não se sonha com mortos. Sonha-se com quem morreu, mas no sonho ele vive. Só se pode projetar vida. Só se conjectura vida. Os deístas olham para cima e vêem Deus; outros buscam energias que propagam vida; outros, ainda, buscam sinais. Carl Sagan via inteligências, porque este era seu mundo interior; cérebros, mentes, inteligências. Eu vejo sóis, estrelas, planetas, galáxias, quasares. É assim que eles se mostram a mim e é assim que vejo a eles. Não os penso; pensá-los é não querer vê-los, é querer prevê-los, antevê-los. Olhando a lua, o luar, eu vejo a luz fria que emana dela, sua forma redonda. Se ela influi nas marés, me revolve e balouça o mar que tem dentro de mim. Se eu pensasse a lua ela ainda faria isto e eu nada poderia fazer, a não ser saber. Mas eu sinto-a! Ou só a sentirei se sabê-la? Aquela estrela? Está morta, diz o físico. Morreu quando? Morreu onde? Eu a vejo e não sou médium. Ela se mostra a mim. O cientista a vê por trás, por onde ela não se nos mostra. Daqui, de onde a vejo, ela continua ali, luzindo, sorrindo luzes para mim. Pensar é procurar pela morte, sentir é estar com a vida.



Gorete mirava o céu de luzes baças. Campos ermos, nuvens altas, os sons. Posso cantar uma musiquinha? Que musiquinha, Gorete?E ela baixinho: Um canto que aprendi na igreja, uma música de Deus. Toda música é de Deus, Gorete. Mas se quer cantar uma música, cante, se quer cantar uma música de Deus, deixe que Ele mesmo cante. Você conseguiria ouvir se fosse Deus cantando? Não está ouvindo, Gorete? O farfalhar das folhas, o tilintar dos galhos, o pipilar das gotas, o chuá das chuvas, o frufru do vento em teu vestido, o pulsar do teu coração, o trovejar?...




Lelê Teles, Brasília