segunda-feira, 5 de outubro de 2009

e ela é tão linda

a linda Magdalena Smorczewska


A gente se conheceu por telefone. Eu esperava uma ligação no orelhão, de repente ela chegou pra ligar. Enquanto procurava o cartão na bolsa eu liguei pro orelhão e ela atendeu. Oi, eu disse. Hola, respondeu ela. Conoces el olor del rocío?, eu perguntei. Si, me queman los ojos escucharlo, ela falou com uma voz que me lembrava uma foto feita pelo Hubble: o nascimento de uma estrela. Escrevi meu nome numa pétala de rosa e dei pra ela. Ela sorriu e me disse que tinha meu nome tatuado no seu coração.



Dali fomos tomar banho de chuva. A nudez mais feliz que já vi banhar. Ela é da Polônia e tem uma singular elegância que não existe na sintaxe do caminhar das eslavas. Eu tive vontade de entrar no vestido dela e despir a sua alma. Tudo o que ela chorava sorria. Ora falávamos em espanhol, ora em francês. E os nossos olhos e olhares falavam numa linguagem que só o vento não conhece, porque o vento só conhece o movimento, e os nossos olhos se imantavam, vidrados.



Teci uma cachoeira com as lágrimas que sorriam em seu rosto e dei a ela de presente, assim como o sol dá luz ao mundo todo. Ela viu quanto interesse havia nesse meu gesto desinteressado. Falamos das florestas que temos dentro de nós, do efeito estufa e do calor que sentíamos subir pela nossa espinha dorsal quando nossas mãos se abraçavam. E também do degelo glacial que nos liquefazia. Falamos das queimadas que nos esfumaçam de paixão. Do tesão que é romper a sua camada de ozônio. Das neuroses de nossos neurônios, das Tsunamis.



Demos um beijinho de borboleta, o rímel dos cílios dela ciciaram nos meus mamilos. Depois um beijinho de esquimó. Eu me acolhi no seu iglu, uma luva de vulva. Depois um beijo de peixinhos. As escamas despidas nas camas... Enquanto eu lhe contava sobre o tantra ela me cantava um mantra, e acordados para o amor a gente dormia.



Ela é uma das criaturas mais lindas que brotaram no meu jardim. Todas as primaveras a gente poliniza. Ela me disse que Copérnico não propôs uma teoria científica, mas apenas compôs um poema, Galileu é que extraiu do poema o cálculo heliocêntrico e justamente por isso o mundo ficou mais bonito. Disse que Newton, ao descrever a gravidade, também propunha poesia. Até hoje não apareceu um cientista pra tornar científico o poema que ele fez. Explicar, por exemplo, o que é a gravidade. Isso ninguém explicou e isso seria ciência. A descrição de Newton é apenas um lindo poema, como o lusco-fusco, o crepúsculo, os arrebóis, o céu de Brasília ao entardecer quando o clima tá seco...



Achei tão lindo ouvir isso de uma flor cheia de pétalas. Toda vez que tento colhê-la ela se encolhe e me acolhe, toda vez que tento comê-la ela me escolhe. Eu adoro salada de flores, ela gosta de fotografias. Eu disse a ela que Os Dez Mandamentos foram a primeira fotografia (foton + grafia, a escrita com luz). A segunda foi o falso Santo Sudário, que é também uma foton-grafia. Ela se despetalou e, nua, pediu que eu a fotografasse. Eu a beijei com tanta ternura que até hoje ela tem gravado nos lábios o meu sorriso.



Agora, sempre que tá frio eu visto a minha musa e saio pra tomar banho de lua. Ela mora numa gruta que tenho no coração, todas as noites ela sai pra se banhar na cachoeira do meu pranto. Eu vivo de amor por ela.



Lelê Teles, Brasília.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

in natura

da natureza do natureba
Há muito a natureza não é um espaço idílico onde o homem se lança em busca de paz interior, energização espiritual, meditação poética etc. A natureza para nós tem uma utilidade e não é vista como natureza, in natura, é vista fragmentada e reificada, uma porção de cada coisa. A terra não é mais um organismo vivo que depende de todas as suas partes para funcionar de acordo. É uma máquina! Podemos improvisar, fazer ajustes, retirar, subtrair; depois reajustar, recauchutar, retificar... Assim pensam os néscios, assim caminha a humanidade!

Porém, mesmo os que amam a natureza, os que a vivenciam, "viva a natureza", a reificam, ou pior, antropomorfizam o seu semblante. Estou pensando isso tudo de frente para uma churrascaria gaúcha, onde vou encontrar um amigo que ainda não chegou. Passa uma garota dos tempos de colégio: saião, sandalhinha, muitas bugigangas nos braços, pescoço, cabelo. Os óculos tão ok, o bronzeado, idem. Me reconheceu. Oi, tudo bem, quanto tempo e blá, blá, blá. Sentou-se. Esperando alguém, perguntou. É, tô esperando um cara que sempre atrasa, e tô morrendo de fome, fica aí e come com a gente. Ela tergiversou, que não comia carne, que era contra a matança de animais, que era um prazer necrófilo, que aquilo era um cadáver, que abrir churrascaria deveria ser crime etc. Eu quase perdi o apetite, e a amiga, pois a moça estava muy nerviosa. Sentou-se acendeu um incenso pra afastar o fedor de carne podre, como ela dizia.

Eu, sinceramente, não sabia se deixava a moça ir embora ou se dava-lhe uns catiripapos, se a aconselhava a ser mais sociável e menos xiita, ou... Me diz uma coisa Dandara, você não acha ridículo essa história de natureba-chic? Sua visão é religiosa, política, filosófica, quê que te impulsiona a pensar estas asneiras? E ela exaltada, excitadíssima: eu não faço essa divisão das dimensões políticas, filosóficas e religiosas, eu sou um animal político, luto pela conscientização de fariseus como você, para que vivamos em um mundo melhor.

Taí uma frase de efeito, eu falei com desdém. É.. eu penso assim, Dandara, por uma razão geopolítica e econômica é saudável que comamos carne e gostemos dela, somos os maiores importadores desta proteína no mundo. Por uma razão filosófica é sabido que a vida se alimenta da vida. Por questões religiosas creio que você não deixará de ir pro inferno, afinal você come repolho, alface, acelga, rúcula... e o que tem uma coisa a ver com a outra, perguntou-me. Ora, minha jovem Dandara, aos olhos de Deus não há diferença entre uma couve e um carneiro. E ela: ãh!? Dandara, uma planta é um ser vivo, tanto quanto uma vaca. Ela nasce, se reproduz e morre. Tudo bem que você possa achar uma covardia uma pessoa criar um pintinho, alimentá-lo e quando for galinha matá-la e comê-la, mas com a couve ocorre o mesmo, você planta, rega, aduba, e quando está no ponto você corta a garganta e faz uma salada.

E ela com os olhões esbugalhados, pensando. Ser contra o churrasco por ser contra a matança de animais e tão ridículo quanto a cena de um gaúcho churrasqueiro chegar aqui e dizer que não come salada porque é contra a matança de vegetais! Mais um golpe forte nas convicções naturebas da moça, desta vez um Jab de direita, ela cambaleava. E tem mais, Dandara, enquanto falamos matamos milhares de vidas que circulam ao nosso redor, ou pra você só é vida se você puder vê-la a olho nu?

Dandara virou-se de lado e ficou girando o incenso no ar. Tá bom, Olavo, tudo bem. Você já foi numa granja e viu como vivem e morrem os frangos? Já viu um matadouro, sabe a covardia que fazem com as vacas? Dandara, por que eu haveria de ir ver estas atrocidades? Você come peixe, né, Dandara? Claro, como Cristo e seus discípulos, que eram todos vegetarianos... Agora deu vontade de esbofeteá-la, me contive. Dandara, um peixe morre de agonia. Agoniza como nós no fundo das águas. O peixe é arrancado vivo da água e se debate até morrer, estressado e afogado no ar. Enquanto falava eu avançava pra cima dela com dentes enormes, ela corcoviava, se saía. Meu amigo chegou, com uma menina de saião e pulseirinha. Eu falei logo, vai comer carne? E ela: não, vou comer vocês dois. Dandara saiu mancando, claudicante e triste; nós entramos na churrascaria com muito alvoroço. Baby Beef, por favor.


Lelê Teles, Brasília.

chove em Brasília

depois de mais de 140 dias pude tomar um delicioso banho de chuva.

A chuva me lava, me eleva, me livra, me louva e me luva!

o quereres

HÁ DIAS QUE TE QUERO
ADIAS QUE ME QUERES!
Lelê Teles, Brasília

eu, você e a chuva


chove um pouco lá fora.


subi ao andar de cima para apreciar o céu chorar de alegria, ver as árvores se arvorarem e sacudirem as cabeleiras ao vento amigo. A água desliza mansamente pelo asfalto negro, tamborila na janela, goteja nas vidraças, enlanguece. Tudo flui para o todo, águas refluem. A Catedral se banha, Palácios se lavam, ministérios se elevam. Há um pouco de magia em tudo, na chuva, no sol quente, nos dias amenos... Ao menos penso eu assim! E de tanto ver e tanto pensar veio-me você nos pensamentos. Ave de plumas leves. Luvas de pelica love. Livre.


então eu era o vento e a chuva. E como o vento eu ventava. Teus cabelos dançavam a dança frenética das ninfas. Pêlos eriçam friorentos, se esgarçam. Eu, vento, cercando-a num abraço morno. Primeiro por cima, alado. Depois em volta, galante, e ainda por baixo, vento safado a levantar saia, subir por tornozelos, beijando batatas de perna, acariciando coxas salientes, mordendo-a. Ainda vento, silvo um sonido que te adentra mornamente aos ouvidos ("deixe que minha mão errante adentre, atrás, na frente, em cima, em baixo; entre").


depois eu era chuva. Molhando transparecia tudo o que segredas e pouco ocultas. Seios, pernas, bunda, barriga e braços. Tudo sentido num abraço, um abraço molhado, um abraço de chuva. Em gota, escorria em deleite nos lábios teus, beijando-lhe a boca e sendo sorvido. Dos cabelos escorria até a nuca, e ciciava um sussurro molhado e morno. Ainda em deslize percorria as voltas de teu pescoço adentrando a blusa entre os seios. Riacho que percorre montanhas.


numa melodia sem som, mas vibrante. Ao percorrer a curva montanhosa dos seios, deslizo em gota única em teu ventre, riacho saindo de montanhas e libertando-se em planície fértil. Pausa para uma volta no umbigo teu, águas que empoçam meigas. Escorria para dentro e para fora, como uma língua d'água. Sentia o eriçar dos pêlos dourados que a adornam. Arrepio!


depois, ainda no curso torrencial de riacho; saio da planície dourada do teu corpo e deslizo ainda mais, a beijar virilhas. Ahhhh, que jactância!


percorro, então, tua floresta negra, águas que se espalham. Boca d’água. Até cair nos lábios macios das margens do rio teu; molhadas. Meu riacho encontra o teu rio e se fundem, numa pororoca férvida, num gozo caliente e tântrico e, juntos, deslizamos até o mar, que é maior que nós dois.


Lelê Teles, Brasília

nihil

lena


É verdade que os poetas não acreditam em nada, perguntou-me um senhor, apagando um verso escrito no muro da paróquia. Se me perguntas se poetas em nada crêem, digo em verdade: Os niilistas é que acreditam em nada; niilidades! Poetas não creditam em nada. Mas acreditar, acreditam. Poetas acreditam na sedução das palavras, na redenção dos apócrifos, na solução dos apóstolos, na sedição das malvadas.

Se crêem em Deus? Sim, crêem ao seu modo. Talvez um deus em letra minúscula seja mais crível, um deus sem chibatas, sem chicotes. Acreditam no amor e na paixão.

Sabem que aos povos da América Latina um deus foi-lhes empurrado goela abaixo e vêem, como um poema, a ressurreição das religiões pré-colombianas, como se esses povos, agora, vomitassem esse deus, antes que a Igreja fizesse de cada novo fiel um foie gras, se é que o senhor entende a língua dos poetas!

E também crêem nos profetas, que são os poetas místicos! Se em nada acreditassem, os poetas, ao invés de escrever apagavam!

Lelê Teles, Brasília.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

o papai noel dos miseráveis


o papai noel dos miseráveis
Num destes conteineres de lixo de Shopping Center, um mendigo encontrou uma fantasia rota de Papai Noel e prontamente trocou-a pelos andrajos que o mal vestia. E saiu assim, esquálido e fétido o nosso Papai Noel miserável.


A roupa de um vermelho desbotado e sujo. As lãs sintéticas que lhe adornavam o colarinho, a aba da gorro e os punhos da blusa estavam encardidas e esfarrapadas. Um enorme rasgo lhe desnudava a bunda. Nas costas, o saco murcho e furado.
Era 24 de dezembro. Em Brasília, uma tarde quente como as manhãs do inferno. E o nosso Santa Clauss do terceiro mundo, imundo, não tinha peru e nem frango, somente a fantasia em frangalhos e um estômago doendo pra caralho. De um lado para outro na avenida, entre vendedores de bugigangas, cuspidores de fogo e limpadores de pára-brisas perambulava o nosso famélico personagem saxão.


Balbuciava alguma coisa em sua voz emudecida pela fome, como um dublador de si mesmo, como um ventríloco esfomeado; ele era a voz guia e o boneco. Dentro dos carros de luxo, vidros hermeticamente fechados, os insípidos e insensíveis funcionários públicos engravatados respiravam o frescor e a frescura do ar-condicionado.


Esse foi o primeiro Papai Noel negro que vi em minha vida (ainda não vi um palhaço negro e isso não tem graça!).


O nosso miserável Papai Noel ia caminhando entre os carros, com o olhar magro, o semblante triste de fome, os olhos fundos e o andar claudicante. Descalço, no encalço do que comer, sofejava para os vidros escurecidos e cerrados dos automóveis: - Dá uma moedinha de presente, filho de Deus! Dá uma moedinha de presente, filho de Deus!



Lelê Teles de Brasília


sexta-feira, 3 de abril de 2009

durma com um barulho desses

http://www.bbc.co.uk/portuguese/multimedia/2009/04/090402_g20obamalula.shtml

segunda-feira, 30 de março de 2009

nefertari, a mais bela


à noite, embriagado de paixão e êxtase, mergulhei em oníricas e piramidais digressões. E lá estava eu, como o pai do grande Imhotep, o construtor de pirâmides, a apreciar uma das mais belas formas femininas que o mundo já viu.



os cântaros jorravam perenemente líquidos aromáticos pelo interior do palácio, as divas vagavam com seus passos lépidos, ventilava uma brisa revolvida pelo adejar das aves canoras; de castiçais, luziam as flâmulas eternas.



nefertari, a musa poetisa de meu palácio, reluzia em todo o seu esplendor. Tecidos finos envolviam seu corpo nu, transparecendo toda a magia de sua soberba beleza. Soa o som das flautas, Nefertari dança votivamente em minha direção. Seu semblante delicia-me, seus olhos me sugam, as mãos serpenteiam levemente descrevendo enigmáticas formas no ar; meu coração desanda, minha imaginação desnuda-a, meus olhos marejam, embaçam, embuçam, o corpo tremeluzente regela, o suor me afoga, os lábios se crispam secos; Nefertari me afaga. Embora seus olhos sejam imantados, como os de uma deusa, sou tragado pelo chácara ondulante de seu ventre. Num frenético e delicioso movimento de cadeiras, cintura, quadris, ventre livre e umbigo. A cada jogar de quadril uma peça fina do delicado tecido colorido cai de sua cintura.



a luz, que provêm dos castiçais, aumenta a dramaticidade na nave do palácio; esmaecida, tremeluzente, agora ela revela somente a silhueta delgada da deusa. Nefertari está nua, levo-a para o pálio de sedas, ela me desnuda. As bocas se beijam, as mãos se abraçam, os corpos se lambem. O umbigo, as bordas eriçadas dos pelos do umbigo convidam-me. Sugo, sorvo, embriago-me de sua pujante e jorrante fonte de delícias, Nefertari, como convém às deusas, reluz em seu semblante de êxtase, ofega hídrica e épica. Entramos um dentro do outro, e juntos cavalgamos numa viagem de sentidos e sensações, o cavalo alado em que nos transformamos leva-nos ao paraíso dos amantes lívidos.



nefertari, minha deliciosa deusa, seu corpo é todo um poema em homenagem ao sol, e pra lá estamos indo, quentes, úmidos, abrasivos e tântricos. Feliz és o Egipto e toda a sua gente: um faraó amante e amado, uma rainha divina e cheia de encantos, faz um reino de beleza e delícias ser o paraíso para os que nele vivem. Feliz é o povo de Nefertari, feliz é a nação de Egipto, mais feliz sou eu, Ramsés II, aquele que é visitado pelo amor em seus sonhos reais de alcova.



ah, como sou venturoso, ah como é feliz a minha alma, como é fraterna a minha musa, como é doce o meu destino. Em teus braços quero morrer, bela Nefertari, em prazeroso e tântrico deleite!


Lelê Teles, Brasília

quarta-feira, 18 de março de 2009

terça-feira, 10 de março de 2009

my michelle

a senhora Obama e seu charme inconfundível

Michelle
ma belle
Sont les mots qui vont trés bien ensemble
Trés bien ensemble
(Lennon and McCartney)

eva uma ova

eva
Eva não foi a primeira mulher
Eva foi a primeira mulher de Adão
Ele tinha outras!

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

sarah





Toda vez que chovia a pequena Sara corria pro quintal e girava sorrindo. Nestas tardes pluviais, ela punha um vestidinho branco e fino; adorava as bátegas vergastando o seu vestido, lambendo-lhe o rosto, grudando-lhe as vestes nas carnes, como que desnudando-a. Os pensamentos iam e vinham; looonges.




Cresceu sob o manto rígido do pai e acostumou-se à ausência da mãe. Sempre que podia o pai lembrava que sua mãe, Ana, havia ido embora com outro homem e que a deixou porque não queria mais a filha, queria liberdade. O pai a descrevia como uma libertina impudente e criou a filha, Sarah, pra ser o oposto da mãe; para tanto, sempre que conversavam, contava-lhe as fugas noturnas da mãe, os amantes que o pai fingia ignorar para manter a família e os papos com macho ao telefone, com ele na sala, vendo televisão e fingindo não saber do que se tratava; era um homem domesticado, conivente e frouxo. Um corno manso, em suma.







Sarah ouvia tudo com uma pontinha de surpresa e um pouco de admiração. Notava quanto o pai, Rodolfo, amava Ana. Percebia que Ana tinha muitos homens e que eles faziam tudo para tê-la. Sarah se esforaçava para se mostrar constrangida e consternada toda vez que o pai lhe contava as peripécias da mãe, "aquela safada", "aquela puta que não vale nada"... como costumava descrevê-la para a filha.



Rodolfo, toda vez que via a filha rodopiar no quintal, sob a chuva forte, via o corpo sensual de Ana, o sorriso lascivo de Ana, o jeito de menear a cabeça que só Ana tinha, a forma de tocar os seios - com as duas mãos cheias e os indicadores e os opositores a acariciar os mamilos. Sarah fingia não ver o pai e levantava o vestido, às vezes o tirava. Outras vezes rolava no chão e enlameava-se nua. Sempre com um riso largo, folgado, concupiscente. Rodolfo fechava a janela e chorava.






Sara nunca falou em namoros nem em meninos em casa. Vivia às voltas com umas amiguinhas. Aos quinze anos, Sarah já era uma mocinha formosa. Busto apojado, lábios lânguidos, olhar ingênuo, corpo saliente… A cada dia Rodolfo notava uma nova semelhança com a mãe. O jeito de sorrir e mexer nos cabelos, a maneira de olhar para os homens - misto de convidativa e desinteressada -, o sorriso largo e folgado, a preferência por roupas que lhe desnudavam as coxas, as calcinhas minúsculas, quase inexistentes…







Rodolfo passou a ficar paranóico e a perseguir a filha, usar adjetivos nunca dantes usados, acusá-la de namorar escondida etc. Até que romperam, Rodolfo disse a ela na última vez que se falaram: "você é igualzinha a sua mãe, vocês duas não valem nada". Ao passo que Sarah lhe respondeu: "pensa que não sei que você me olha tomando banho de chuva e de chuveiro. Que você me deseja, que se mortifica porque não pode me ter. Seu velho safado, se não fosse frouxo e tivesse coragem faria comigo o que não pode fazer com minha mãe. Eu não sou santa, pai, eu nasci puta!" A partir deste dia nunca mais falaram um com o outro.







Três meses depois, numa tarde de chuva intensa, Sarah brincava de rodopios debaixo d'água, Rodolfo lambia a vidraça da janela, entre lágrimas. Uma buzina toca, duas, três vezes. Rodolfo e Sarah não ouvem. Até que Ana entra subitamente no quintal. Vê a filha rodando, nua, e enxerga o pai à janela. Ana grita o nome de Sarah, Sarah se vira e vê a mãe. Ana tira o chale que lhe cobre o corpo e veste a filha. As duas se abraçam molhadas. Ana pede pra filha olhar a janela e Sarah vê o pai, fala baixinho pra mãe que ele sempre a vê tomando banho. Rodolfo vê Ana abraçada com Sarah e não sabe como reagir, fica ali, parado, inerte, inútil.
As duas entram em casa, Ana o agride e o chama de tarado, de velho sem vergonha, safado, cachorro, grita, esmurra, morde e leva a filha embora.




Sarah entra na caminhonete importada da mãe, vislumbrando suas roupas sofisticadas, seu ar de madame. No caminho Ana pede desculpas, diz que não podia mais viver com Rodolfo, mas temia que ele se matasse se ficasse sem a mulher e a filha, tudo o que ele tinha na vida. Esperava a hora certa de ir buscá-la.






Chegando na bela e ampla casa de Ana, Sarah se depara com quadros da mãe, pintados em grafite. Ana em poses sensuais, sempre com um lençol branco ao fundo, os tons em preto e branco, as coxas sempre mais grossas do que são realmente, os seios também eram estilizados, maiores, mais volumosos, jactantes.





Ana diz que o marido é artista plástico e fotógrafo e um homem muito bom pra ela, leal, fiel e amantíssimo. Disse que desde que conheceu Raul nunca mais quis saber de outro homem, que ele era maravilhoso, carinhoso, amante de vinhos, de versos e de valsas. Infelizmente Raul estava viajando, chegaria dali a duas semanas.






Sarah conhece o seu quarto, já montado para recebê-la. Sorri de felicidade, as duas tomam vinho e conversam até adormecer. Ficam amigas, Sarah fala pra mãe sobre os desejos proibidos do pai, a mãe chora. Afaga a filha, beija-a. Pergunta se ele a violou, ela responde que ainda é virgem. A mãe a olha com ternura.






Duas semanas depois Raul chega em casa. Um homem cinquentão. Grisalho, pele bronzeada, voz grave e vigorosa. Recebe Sarah carinhosamente, como a uma filha. Os três estão felizes.






Às noites tomam vinho em volta da piscina ou da lareira, Sarah recita uns poeminhas picantes, mas que não chegam a ser eróticos, ana a introduz à dança do ventre. Uma família que se diverte e se respeita. Sarah passa a usar roupas cada vez mais curtas, cada dia mais saliente, cada noite mais fogosa. Uma noite Raul está pintando a mãe no ateliê, Sarah entra subitamente, se despe e posa ao lado da mãe, imitando-a, e pergunta maliciosamente a Raul: "acho que você nunca pintou uma virgem, essa é a sua oportunidade". Falou isso e segurou os seios com as duas mãos, como fazia a mãe. Esse mimetismo deixou Raul desconcertado.






Nua, Sarah tem a forma idealizada por Raul no corpo de Ana: seios fartos, coxas grossas, bunda redonda, lábios carnudos. Inevitavelmente Raul vê em Sarah uma miniatura da mãe, uma Ana na flor da idade, uma Ana indeflorada. Após as longas horas de pintura, Sarah pediu pra ser fotografada. Como tomavam vinho e estavam inebriados, todos faziam tudo inconsequentemente. Sarah se deliciava, sobretudo quando percebia uma pontinha de ciúmes da mãe.






Numa manhã iluminada e com pássaros gorjeando rimas, Sarah encontrou um livro do Kama Sutra no ateliê de Raul e viu na internet umas páginas relacionadas ao tântra, que Raul marcara em seus favoritos. Quando teve oportunidade, conversou sobre o tântra com Raul e pediu pra fotografar algumas poses que vira no Kama Sutra. Ana não estava em casa. Raul colocou a câmera no automático algumas vezes pra reproduzir com ela algumas cenas. Depois conversaram à lareira sobre o tântra. Raul propôs iniciá-la no sexo tântrico.






Ambos se deitaram nus, besuntaram o corpo com óleo aromático, acenderam um incenso cada um e mergulharam na meditação mântrica. Em pouco tempo Raul estava sobre Sarah, tântricamente.
Ao chegar, Ana vê a cena e se desespera. Puxa uma espada medieval que adornava a parede e enfia-a nas costas de Raul que cai ferido de morte. Sarah olha perplexa pra mãe e grita: "mãe, não estávamos fazendo nada de mais, Raul me iniciava na arte do tântra, sem penetração, mãe, eu sou virgem como te disse e Raul não queria fazer nada disso, eu é que insisti. Me perdoa, mãe, mas só tive coragem de fazer isso porque eu confiei nele e ele confiava em mim".






Ana passava as mãos pelos cabelos, desesperada, Raul, tombado ao lado de Sarah, já não respirava.




Lelê Teles, Brasília

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

taças de leite


duas taças,
deleite.

hai kai balão

shoot the shoe



Hai kai midiático:
VEJA,
O GLOBO
É UMA FOLHA MORTA


Hai kai ONGuico:
SE ACABAR A MISÉIRA NO MUNDO
EU MORRO DE FOME



Hai kai neoliberal:
SÓ O ESTADO
PRA ME TIRAR
DESTE ESTADO


Hai kai vegetariano:
VEGETARIANO
POR ISSO,
AINDA VIRGEM


hai kai bolivariano:
EVOÉ,
EVO
EVO, É.


hai kai neocon:
NÃO PRECISA ACREDITAR EM MIM
BASTA ACREDITAR EM DEUS



Hai Kai Moderno:
EU SOU COMUNISTA.
MINHA ESPOSA,
CONSUMISTA.
A GENTE SE AMA!




Lelê Teles, Brasília

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

os homens-alicerce

Primeiro plano: um pau-de-arara com esquálidos nordestinos que nunca haviam visto concreto, aço, nem máquinas de construção civil. Trabalhadores desqualificados erigiram o sonho do faraó Juscelino Himhotep de Oliveira. Ao fundo, o esqueleto do Congresso Nacional, erguido sobre outros esqueletos. Desde sua construção o Congresso Nacional é um grande agá.




QUANDO CHEGARAM AQUI ELES TAMBÉM TINHAM DESERTOS DENTRO DE SI

VINHAM DE LUGARES DE FOME

EMPOLEIRADOS EM PAUS-DE-ARARA EMPOEIRADOS




RAIMUNDOS, NONATOS, FRANCISCOS, EUSTÁQUIOS...


NÃO TINHAM QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL

NEM NUNCA FREQUENTARAM UM CANTEIRO DE OBRAS, AFINAL.

MUITOS NUNCA HAVIAM VISTO UMA OBRA FEITA PELO HOMEM

(PELOS MENOS UMA QUE FOSSE DIGNA DESSE NOME)



COMO EM UM MILAGRE,

DE UMA HORA PRA OUTRA,

CRIARAM UM LINDA IMAGEM

EDIFICARAM PALÁCIOS COM COLUNAS E VITRAIS

ERGUERAM MUSEUS, MINISTÉRIOS E CATEDRAIS

CONSTRUÍRAM PONTES, PONTOS, VIADUTOS, USINAS

PARIRAM LAGO, GERARAM VIAS, ENGENDRARAM VIGAS



PORÉM, HÁ UMA HISTÓRIA CONTADA QUE AINDA ECOA NOS MEUS OUVIDOS,

E SILENCIADA NESSE MAJESTOSO ESPAÇO ENTRE O CONCRETO LINEAR E O GALHO RETORCIDO

A HISTÓRIA DOS HOMENS-ALICERCE



OS HOMENS-ALICERCE VIERAM DA MESMA REGIÃO DOS CHAMADOS PIONEIROS

CHEGARAM JUNTOS, NÃO CHEGARAM PRIMEIRO

COMERAM A MESMA MARMITA, DORMIRAM NA MESMA DORMIDA

E TAMBÉM AJUDARAM A EDIFICAR, MAS TIVERAM UM FINAL NADA EDIFICANTE



BRASÍLIA FOI FEITA A TOQUE-DE-CAIXA

O RITMO FRENÉTICO, DIUTURNO, NA VELOCIDADE DAS EDIFICAÇÕES PIRAMIDAIS

PRODUZIRAM RAPIDAMENTE UM GRANDE CONTINGENTE DE VITMAS FATAIS



BRASÍLIA, A JACTANTE E MAJESTOSA CAPITAL

FOI A NOSSA EPOPÉIA E O NOSSO PIONEIRICÍDIO FEDERAL


MUITOS MORRERAM CAINDO DE ANDAIMES, PENDURADOS EM CAIBROS

ESCORREGANDO DE ESCADAS, SOTERRADOS EM AVALANCHES DE SAIBRO

TRITURADOS EM MÁQUINAS, ARRASTADOS POR ESCAVADEIRAS, EXPLODIDOS EM PEDREIRAS...

ALVEJADOS POR TIROS!


(OLHA, DEIXA EU TE DIZER UMA COISA,

PODE TER UM CANDANGO NUMA PILASTRA DO SEU PRÉDIO!)


ELES MORRIAM AOS MONTES,

VOCÊ SABE ONDE FICA O MEMORIAL EM HOMENAGEM AOS QUE MORRERAM

PARA VER O SONHO DO FARAÓ REALIZADO?

SABE ONDE OS CORPOS FORAM SEPULTADOS?

ELES VIRARAM MASSA, REJUNTE, BRITA, CASCALHO...

NO ACAMPAMENTO PACHECO FERNANDES,

(NA VILA PLANALTO)

DEZENAS DELES FORAM FUZILADOS PELO EXÉRCITO INFAME

(NO CANTEIRO DE OBRAS, NA BEIRA DO ASFALTO)

O LAGO FOI INUNDADO `AS PRESSAS, SEM ESPERA

AFOGANDO AS HUMILDES MORADAS DOS PIONEIROS

QUE ENCONTRAVAM ABRIGO NA SUA CRATERA


QUEM VAI CONTAR A HISTÓRIA DESSES HOMENS, MEU DEUS!


OS HOMENS-ALICERCE

NÃO FAZEM PARTE DA MEMÓRIA DA CIDADE,

EMBORA INSISTAM EM RESSUSCITAR E CONTAR A SUA VERDADE.




Lelê Teles, Brasília.