Em ti sinto toda a riqueza do norte. A silhueta sinuosa dos rios, a candura das águas, a brandura das aves e o coração forte. A nudez selvagem da rua, a tua civilizada beleza de mulher nua. Uma ilha ignota que esconde uma princesa, cheia de lânguidas línguas, lépidas mãos, lassas presas. O gosto suculento do fruto exótico, da boca lírica, do corpo erótico. Um raio de luz, uma cruz em que me prego em esplendor, repleto de alegria, ávido de fervor, cheio de magia, grávido de amor. Dos braços da cruz para os abraços teus. Como um homem nu se tornando um Deus!
Lelê Teles, Brasília
Lelê Teles
Lelê Teles, Brasília
Minha
amiga, Momoko, estava cada vez mais pesada. Enamorou-se de um jovem
bonito e forte; sorriso branco, cabelo curto e jogado pra trás; usava
gravatas, mesmo durante dias de sol, advogava como um rábula, não lia,
bebia sempre, fumava e cheirava muita cocaína; usava perfumes caros,
carros caros, mulheres caras.
Momoko se resguardava para um homem
elegante e que a compreendesse. Encontrou o tal Raul.
Ele
abria a porta do carro, puxava cadeira, mandava flores; tinha bons
hábitos. Momoko era dentista, era apaixonada por sorrisos construídos;
tinha tara pela dentição maquiada, pelo brancor artifical dos dentes,
pelo sorriso de fotografia, que é mais uma careta que um sorriso. Mesmo
de boca fechada, ela estava a imaginar a arcada de um homem, a mordedura
etc.
Momoko
era uma menina recatada, dormia cedo, no máximo às onze, por isso nunca
saía à noite com Raul, mas nunca o impedia de sair; confiava nele, nos
hábitos dele, no caráter dele, em seu amor. No máximo saíam pra jantar,
Raul a deixava em casa e ia encontrar os amigos. Momoko tinha uma
silhueta delgada, fina - não mantida à cocaína, como a silhueta das tops
internacionais -, mas por bons hábitos alimentares e por uma feliz
combinação genética.
O
casamento durou dois anos. Raul passou a inventar posições sexuais cada
vez menos confortáveis para Momoko e cada vez mais bizarras. Chegava de
madrugada, suando álcool, e vinha com uma sede alucinada pra cima dela.
Dava fortes tapas em seu rosto, a chamava de nomes estranhos, de outros
nomes, de nomes de outras mulheres; pedia para ela dizer que era sua
puta, que era cachorra, que era vadia etc. Momoko temia desgostá-lo e
seguia caninamente as orientações do amado tresloucado. Até que um dia
resolveu dar um basta e parar com tudo. Ele a chamou de frígida, que ela
não era mulher para ele, que ele não sentia tesão por ela, por isso
tinha que chamá-la pelo nome das garotas que ele ficava à noite.
Sobretudo prostitutas. Momoko ficou horrorizada. Depois ele abriu o imêio e
mostrou fotos dele com mulheres no motel, outras com homens e mulheres e
uma em que ele chupava um homem enquanto outro o enrabava por trás.
Depois
da separação, Momoko não saía mais de casa. Passou a ter nojo de homem.
Só, infeliz, comeu muito e engordou como uma porca. Escreveu centenas de
cartas para si mesma. Com uma imensa vontade de morrer. Não suportava o
peso do mundo, e nem o seu próprio. Numa noite de lua cheia, ela subiu
na sacada (décimo primeiro andar), vestiu um lindo vestido que nem lhe
entrava mais e saltou num mergulho lívido para o infinito.
Que
maneira estranha de se livrar do peso do mundo, pensei. Aí, lembrei-me
de Paul Valéry: “é preciso ser leve como o pássaro e não como a pluma”!
Lembrei-me também de Ítalo Calvino. Pensei nas brancas e alvas formas
inventadas por Cruz e Sousa, um subterfúgio, usar o branco para mostrar o
negro. Imaginei que Laila tinha vontade de voar, e não de cair como um
machado sem cabo dentro do mar. O desejo de voar é antigo, e a certeza
de se conseguir também. Cyrano de Bergerac, quando quis ir à lua,
besuntou-se com tutano de boi para ser atraído, de outra vez quis ser
alçado por gotas evaporantes de orvalho. Os iogues, longe do peso do
mundo, levitam. Cristo, que parecia proferir um paradoxo quando disse “o
meu jugo é leve”, também jogava com o desejo de voar, e, ao
ressuscitar, pairou no ar para ser visto por Madalena, como um
beija-flor divinizado. Elias, no Velho Testamento, sobe aos céus
conduzido por uma carruagem de fogo. O carro é pesado, mas o fogo que o
consome o alça em fumo e vapores de fumaça; bela alegoria. No tempo em
que as mulheres eram subjugadas por tudo e por todos, algumas se
livravam deste peso voando em vassouras. Os avatares e cavalos do
candomblé, pretas gordas geralmente, pairam numa outra dimensão,
enquanto leves espíritos povoam seus corpos, aliviando a vida dos que
aqui se encontram. Os hindus traziam seus deuses em carros, veículos que
desafiavam o próprio peso e pairavam no ar...
Seguramente
Momoko voou para a imensidão. No momento em que seu corpo físico tocou o
chão, seu espírito rasgou o solo e mergulhou numa viagem deliciosamente
leve e lívida. Mordia raízes, molhava-se em freáticos lençóis d’água,
nadava na terra, transpunha crostas, engolia fogo, infinitava-se,
infinitesimalmente. Leve como o pássaro que flutua no pélago espacial,
determinando o próprio destino e fazendo o próprio caminho, e não como a
pluma que flutua ao sabor do vento, sem saber.
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