sexta-feira, 21 de novembro de 2008

todo en la vida es sueño

A magestosa e caríssima Ponte JK. "Uns querem transformá-la em cartão-postal; outros, em inquérito policial" (GOG).
Se chamava Washington. Aliás, chamavam-no Washington, ou melhor o seu nome era Washington, mas todos chamavam-no Uoshto. Creio que ele próprio não sabia a grafia de seu nome; nasceu assim, meio torto, claudicante, de viés. Sonhava como todo menino, dormindo e acordado, sonhava mais acordado que dormindo. O seu sono não era tranqüilo, tinha sempre um rá tá tá tá, um tiroteio noturno, vizinhos se esbofeteando de madrugada, cachorros dando carreira em desocupados, os cachaceiros que cantavam ao longe.
Mas mesmo assim ele sonhava...
...no sonho ele flutuava; pétala que se desprega e vai descrevendo um poema no ar. A gota de orvalho cintila náufraga a anunciar o silêncio sombrio das fragatas a singrar. Uoxto sonhava com sabores inauditos, texturas nunca dantes experimentadas, sonhava também com o olfato. De facto criava um mundo inefável na fantasia onírica.
Mas o sonho não é reminiscência, não é lembrança da vida em vigília? Oshto, como não tinha tempo pra teorizar - nem método - ia assim, sem querer, desafiando as teorias que pretendem dar conta do material singular que permite ao homem uma dose de torpor e encantamento. Sempre lhe vinha o que ele nunca via, como um fomentador de desejos. Os sonhos criavam nele desejos e os satisfaziam, como faz a publicidade; não, não, a publicidade apenas fomenta desejos, o dinheiro é que os sacia. Já sonhou em línguas que ele nunca ouviu, parlamentando com autos signatários, articulando bem e descrevendo sintagmas dentro de uma estrutura ignota.
A mãe o acorda aos berros: "Óxto, acorda doido, vai procurar alguma coisa pra cumê que tua irmã morre de fome enquanto tu fica aí, como fi de adevogado, de boca aberta".
Toda manhã era assim, sacolejado pela mãe, levantava vôo em direção à cidade em busca do que fazer, na ânsia do que comer. Morava debaixo da ponte JK, também conhecida como terceira ponte, que liga a cidade de Brasília ao bairro do Lago Sul, que tem o IDH igual ao da Noruega. Ali, debaixo da ponte, uma favelinha ia vivendo com a vizinhança abjeta que descarregava neles todos os dejetos diários. Além do alarido do tráfego trêfego. Todas as manhãs Oshto despertava ao som das embarcações: lanchas, iates, kite surf, esquifes, caiaques etc. Brasília é a terceira cidade brasileira em número de embarcações náuticas!
Óshto celebrava aquele playground aquático onde ele jamais estaria fisicamente, mas já sonhou com um mar azul e flutuante, ele nadava em bolhas d’água no refluxo matinal de nove luas em planeta ignoto. Dançava ao som das nuvens em deslocamentos.
Se espreguiçava ao despertar, como faziam os cães e os gatos; mimeticamente. O Lago Paranoá, esta maravilha artificial que margeia toda a cidade, tem as águas verde-musgo em alguns pontos onde a balneabilidade é proibida, justamente no ponto onde a mãe de Uóshto, e outros renegados, estendeu a lona negra que é o seu abrigo. Fétida casa, úmida e sombreada pelo umbral da ponte.
Nunca tinha o que comer amanhecendo, ritualisticamente ele punha as mãos em concha e bebia um trago das águas verdes da parte poluída do lago. Cria que o verde era devido ao alto teor nutritivo da água. Conselho da mãe: "Tome uma caneca dessa água todas as manhã, aí tem vitamina, meu filho. Isto é merda de ministro, de deputado, médico e adevogado. Esse verde aí é muita rúcula, alface, brócolis, aspargos, toda a sorte de verdura e leguminosa que possa existir. Nunca se viu uma água tão nutritiva como esta".
De facto Uoshto tinha uma barriga gorda, efeito da água, não se sabe se benéfico ou maléfico. Certo dia, um garotinho de quinze anos tomou muito whisky e cheirou cocaína a noite toda, pegou a lancha do pai e foi dar cavalos-de-pau na água. Desgovernou-se e entrou facilmente na casa de lona preta.
Washington tinha visto a festa da posse do presidente pela manhã e passou o dia inteiro ocupado com isso, o presidente havia sido gente como ele, quiçá tomou água nutrida como ele, por isso suportou. Nesta noite Washington sonhava que presidia uma cidade repleta de pirâmides, era assim como o rei Pacal, dos Maias. Amante das artes e das nobres edificações...
A lancha esmagou mãe, filho e filha. Em algum lugar está Washington em sonho, talvez embalado pela mística de Pacal em piramidais digressões estelares. Porque todo en la vida es sueño.




Lelê Teles

Um comentário:

Luiz Calcagno disse...

Ele é o brasiliense que Brasília comeu.