segunda-feira, 31 de março de 2008

Gorete e a ressurreição


as duas irmãs estão à frente, tensas e chorosas. logo em seguida, Jesus Cristo.


em segundo plano a turba curiosa, estupefata. à frente, com passos lentos, vai surgindo o moribundo agora vivo. Assim que transpõe o umbral da cova, a figura de Lázaro vai sendo preenchida pela luz quente das áridas paragens da Judéia. a turba recua um pouco, boquiaberta e assustada. Marta e Maria avançam lentamente para próximo do irmão.



Jesus permanece imóvel, impávido, incólume. Lázaro, então, rompe o silêncio: mas o que significa isso?, fala, olhando para as ataduras cheias de chagas que envolvia o seu corpo outrora moribundo. quem fez isso comigo?, pergunta, enfático e furioso.



os curiosos ficaram ainda mais assustados, recuando um pouco, chocados.


não seria fácil pra nós vivermos sem ti, Lázaro! disse Maria, sua irmã, enquanto Marta a afagava. Lázaro, colérico: então foi pra satisfazer vocês que me trouxeram de volta? quer dizer que enquanto vocês viverem eu terei que, uma vez morrendo, ressuscitar para fazê-las feliz, até que as duas morram?!

Jesus, então, resolve falar: Lázaro, Deus é contigo. felizes estão as tuas irmãs, e cheio de júbilo está o povo que presenciou mais uma das graças do Pai.



Lázaro, então, num ataque de fúria, se lança para cima do Mestre da Galiléia. por quê você fez isso comigo, cara? por quê me trouxe de volta?! e Lázaro olhava no fundo dos olhos-pélagos do Deus em carne. furioso: Você sabia onde eu estava; o que mais me indigna é que Você sabia onde eu estava! se Você teve o poder de me trazer de volta, Você poderia ter me perguntado se eu desejava voltar. Mas não. Você quis satisfazer a vontade de minhas irmãs e seguir na Sua campanha, no Seu proselitismo profético, às custas do meu amargo retorno. eu quero que Você me mande de volta, agora!


a turba urra de curiosidade, uns olhando para os outros, todos interrogativos. Lázaro volta para a tumba de onde saíra - sinistro ato -, e de lá grita: Jesus... não quero que ninguém entre aqui, nem Você e nem minhas irmãs, até que Você me mande de volta para o lugar de onde me tirou, sem pedir a minha permissão. as irmãs choram convulsivamente. Jesus coça a cabeça... cai o pano.


porra, Fabão. mas isso é muito forte. qual é o sentido de se encenar isso, cara? Gorete, tá afim ou não de dirigir a peça? não sei Fabão, lê de novo, tô confusa.


estávamos, eu e Gorete, num ritual nayambing, na chácara de uns amigos rastafaris, da Guiana Inglesa, ouvindo a deliciosa música gospel dos rastas, e o retumbar dos tambores sincopados. era lua cheia, e eu realmente gosto de estar com esses caras, é uma religião deliciosa e interessante a deles, e eles são puros e verdadeiros, isso me encanta, a mim e à Gorete.


numa pausa pra comer, eu lia pra Gorete uma peça que escrevi sobre Lázaro e gostaria que ela dirigisse. Gorete me disse que tinha white widow e ia acender um só pra ver se eu conseguiria convencê-la a dirigir a peça. como os tambores do nayambing, o white widow é irrecusável.


eu disse a ela, enquanto fumávamos, banhados pela lua e ao som longínquo dos tambores: Gorete, a ressurreição de Lázaro é uma contradição à pregação do mestre. como assim, Fabão?


Gorete, lembra que em Atos dos Apóstolos 3:1-10, Pedro e João encontram um coxo à porta do Templo, a esmolar? "não temos ouro nem prata, mas o que temos lhe damos, e fez o coxo andar normalmente", completou Gorete. e nós Gorete, não chegamos a conclusão no dia em que lemos isso juntos que não fazia sentido com a doutrina do Cristo? de facto, Fabão, chagamos a conclusão que o Mestre não curou ninguém que não tenha buscado a cura, a fé é que curava as pessoas, segundo a doutrina do Cristo; Pedro foi arrogante em seu proselitismo, fez o que nem o mestre teve o despudor de fazer. isso mesmo, Gorete, o homem pediu esmola e não que lhe retificassem as pernas; Pedro não podia se arvorar como mágico; a cura milagrosa e a fé caminham juntas.


no entanto, querida, em Lázaro, vemos uma única vez Jesus intervir por alguém que não clamou por ele. porra, Fabão, é isso! e Jesus, quando foi ressuscitado por Deus, ficou entre os vivos poucos dias, só até dar as últimas instruções aos discípulos, depois foi para as tais outras moradas, onde vive Jacó e Elias, que também não morreram, foram arrebatados para o "céu". por que diabos ele fez Lázaro viver de novo num lugar cheio de cegos, coxos, entrevados, mancos, prostitutas e sanguinários legionários romanos? o cara tava no paraíso! né não, Gorete?! e quer saber mais, querida, os egípcios também criam em ressurreição, por isso se enterravam com seus súditos e familiares, envoltos a todas as jóias que tinham. criam que, não importam para onde fossem, voltar pra cá seria sempre melhor. o Mulçumano que se explode por aí, crê no além, lá ele sabe como é, tem Alá e muitas mulheres virgens esperando-o para amar lascivamente. o cristão não sabe o que é o paraíso e talvez por isso não creia nele com tanto fervor. lembre de Peter Tosh: todo cristão quer ir pro céu, mas nenhum quer morrer! minha vó, Gorete, agonizava no leito de morte, já velha, sem andar, sem sentir o sabor das coisas e tendo que ser lavada por outras pessoas, assim mesmo ela se apegava ao terço e pedia a Deus que não a mandasse para o paraíso, ela queira continuar viva, mesmo que em condições degradantes; eu cheguei à conclusão que minha vó não cria com fervor que havia uma outra vida e um outro lugar.


os cristãos, Gorete, não contestam a ressurreição de Lázaro porque no fundo não crêem que Lázaro pudesse estar em um reino de bonança e paz, eles acham lindo a ressurreição de Lázaro, acham normal que Cristo tenha trazido alguém da "outra morada" para reviver no deserto da Judéia. ora, se Lázaro vivia aqui e morreu, logo ele vivia em outro lugar; elementar. ao voltar pra cá ressuscitado, teve que morrer no outro lugar onde vivia. a ressurreição é, por tanto, além da volta à vida, uma segunda morte!


e a onda do white widow bateu. ouvíamos o som longínquo dos tambores, de boca aberta e quase babando. e não dissemos mais uma única palavra. A lua também nada disse.




Lelê Teles, Brasília.

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