quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

a vegetariana e a planta carnívora




Dandara é uma mulher moderna. Desde pequena, por influência da mãe, se esforçou muito nos estudos; sempre teve uma meta, um foco, um objetivo. Mesmo quando o assunto de muitas das suas coleguinhas era somente o trivial. Por não gostar muito de trivialidades é que Dandara foi ficando cada vez mais seletiva com as amizades.

 
No ensino médio, suas amigas eram iguais a ela, o que ratifica a teoria sociológica do semelhante que atrai o semelhante. Quando conversavam com outras garotas, sempre estavam a afirmar que elas eram escravas da cultura e do machismo, e que um mundo novo era possível, bastava que elas tivessem mais autonomia e respeito. Os homens eram vistos como misóginos. Os professores como profanadores da moral, uma vez que se insinuavam para as meninas jovens, aproveitando-se da condição privilegiada que mexia com a imaginação das moças. Os professores eram sempre vistos como inescrupulosos. Vez por outra, Dandara se mostrava irascível e gritava com quem estivesse em sua frente.
 
Foi ainda no colégio que nos conhecemos. Eu estudava para fazer jornalismo, e ela para ser funcionária pública. Disse-me que escolheria o curso quando estivesse próximo ao vestibular, o que ela queria era um canudo para prestar concursos para a carreira pública. Quanto a isso não discutíamos, mas discutíamos quanto a todo o resto.
 
Dandara entrou para a universidade no mesmo semestre que eu, ela estudou Relações Internacionais. Seis anos depois ingressara na carreira diplomática. Hoje Dandara é uma mulher bem sucedida, acreditou em um sonho, lutou por ele e teve êxito. Dandara obteve as conquistas materiais que almejou, mas tem um problema. Ela descobriu que isso não é tudo. Ela tem 40 anos, não tem filhos, não tem marido e nem marida, como muitas mulheres de sua geração. O que Dandara tem é um grande problema psicológico.
 
Desde jovem que a vejo pregar contra o papel de mãe, a subserviência ao marido, a jornada humilhante de dona de casa... Eu sempre dizia a ela que queria me casar com uma mineira que soubesse cozinhar melhor que minha mãe. Dandara via isso apenas como deboche, mas ela via em mim um machistazinho escravo da cultura. Dandara, com essa paranóia feminista, descobriu o Yoga, o incenso, a Índia, o Osho e o Krishnamurti. Conheceu também, por meio da Nova Era, que no mundo existiam divindades femininas, deusas. E tudo isso caiu como uma luva pra ela.  


Dandara passou a conviver com amigos esquálidos e fleumáticos. Tomava clorofila, comia pão integral e cheirava incenso noite e dia. Enfiava pequenas agulhas no corpo, meditava, jejuava e cantava mantras. Em pouco tempo sendo bombardeada pelo proselitismo iogui, Dandara resolveu abrir uma pousada em Alto Paraíso. Depois criou uma ONG e abriu um instituto de permacultura. E foi crescendo e se tornando uma profissional, uma empresária de sucesso no ramo. Agora ela toca um restaurante de comida macrobiótica em Brasília, além da pousada em Alto. Virou diplomata da vida macrobiótica, defensora das árvores e dos animais.
 
Um dia, ela me ligou para batermos um papo. Fui até a sua casa e lhe levei uma planta de presente em um vaso, era uma Dionéia. Eu disse a ela que era uma planta com a qual ela aprenderia muito. Falei como mantê-la e a coloquei em um local onde ela teria luz e humidade. Falamos um pouco sobre a vida, eu falei da minha felicidade de ser pai. Falei que minha mulher era feliz com a sua condição de dona de casa e mãe etc. Dandara apenas ouvia. Falou-me sobre as divindades femininas, sobre a perseguição às bruxas e falou também das mulheres afegãs. Reiterou a sua abominação às burcas e pregou que um dia as mulheres do oriente seriam livres tais quais as do ocidente.
 
Mas se as mulheres do ocidente fossem realmente livres não existiriam pessoas como você pregando contra o machismo aprisionador, Dandara. Ou são livres as mulheres no ocidente e somente vocês feministas é que se aprisionam? Dandara, como sempre, ficava apenas me olhando. Esperando eu terminar o meu raciocínio. Eu continuei: Dandara, minha flor, a burca e o tubinho são imposições masculinas. E as religiões monoteístas, com seu Deus no masculino e seus profetas homens, é que criaram essa nossa forma de se vestir, aqui e alhures; concluí.
 
Dandara concordava, ela lembrou que quando os cristãos chegaram aqui as moças andavam nuas e nenhum homem as atacava para estuprá-las. Os cristãos trouxeram as roupas para cobrir as "vergonhas", trouxeram o pecado, o desejo e o estupro. Depois foram despindo vagarosamente as mulheres, até o seminu que se vê hoje. Impedir, Dandara, que uma mulher vá à escola usando uma túnica, como o fazem os franceses, é simplesmente não reconhecer que somos vestidos e despidos pela cultura, e portanto, também pela religião. As moças francesas não usam túnicas, mas vão à escola vestidas como cristãs.

 
Depois de muita conversa mole, Dandara me disse que estava aprendendo a tocar Didgeridoo, um instrumento de sopro (aerofônico) criado pelos aborígenes australianos há pelo menos 1.500 anos. Me mostrou a engenhoca, eu dei de ombros, dei-lhe três beijinhos e fui embora. . . . Lá em baixo, do estacionamento, dava pra ouvir Dandara treinando a respiração para tocar com maestria o Didgeridoo. Este instrumento exige um grau de concentração muito alto e muito treinamento. A respiração circular é o ponto mais difícil de ser atingido. Essa respiração constante faz o tocador entrar em transe, o fluxo de oxigênio no cérebro provoca alucinações. 

Depois de quase uma hora inteira tocando o instrumento, Dandara sentou-se no sofá. A visão estava um pouco turva, ela delirava. Olhou fixamente para a Dionéia. Uma mosca pequena passa voando próximo à planta, a Dionéia a seduz com sua forma vúlvica, a mosca é atraída para dentro das folhas da planta. Dandara leva um susto incrível que quase a tira do transe. A Dionéia fala com ela, com voz de planta e na linguagem floral: "oi, eu sou uma planta carnívora". E eu sou uma mulher vegetariana, respondeu Dandara, sonolenta. "Bonito, vejo que tens muitas plantas em casa e que as cultiva com carinho. No entanto, você as matará para matar a sua fome", falou a planta em clorofílicos pensamentos. São hidropônicas, disse Dandara. Gosto de ter a casa cheia de plantas, é minha horta de apartamento. Eu mesma cultivo, é mais saudável.
 
A Dionéia fala novamente, inquiridora: "e por que não comes animais, como eu faço?" Porque não preciso tirar uma vida para me alimentar, dona plantinha. "Mas você tira a vida das plantas, tirando a vida das plantas você tira o alimento de outros seres, o que provoca mais mortes. E esse aquário que tens aí na sala? Praquê aprisionar os peixinhos? Moça, é a sua religião que a impede de comer animais ou é a religião dos animais?" O quê? "Perguntei se você não come animais por causa da religião". Não dona planta, quer dizer, não sei. As religiões do mundo, quase todas se alimentaram de sacrifícios de animais para servir aos seus deuses. Eu é que não como carne por princípio. 


A Dionéia simulava um farfalhar de folhas, mas as folhas duras somente meneavam lentas, ela prosegue: "sim, muito bonito, muito bem, mas eu quero saber qual é esse princípio, dona moça?" Não sei dona planta, eu amo o reino vegetal, as plantas são irracionais e incapazes de fazer mal a qualquer pessoa. Os animais, idem. Mas as plantas existem para saciar a nossa fome. "Pois eu penso o mesmo sobre o reino animal, minha senhora. E acho que a senhora deveria aprender algumas coisas com o reino animal, como a constituição de famílias, o instinto gregário, o papel dos gêneros etc. E digo mais, é com o mesmo despudor com que a senhora come vegetais que nós carnívoras comemos pequenos animais vertebrados e insetos. E digo mais, minha querida, se a senhora fosse um pouco menor, ou eu fosse um pouco maior, eu não hesitaria em comê-la. 

Alguém tocou a campainha. Dandara despertou do transe. Arrancou a planta furiosamente do vaso e, em um ato insano, a atirou pela janela do apartamento. Abriu a porta bruscamente e era o rapaz da água, todo solícito: bom dia, a senhora pediu água mineral? E Dandra respondeu ríspida e secamente: e alguém já te pediu água vegetal ou água animal? Seu animal!

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