Se você morresse hoje, o que você deixaria? Pergunta-me Gorete, que acaba de chegar e se deita conosco na grama, sob um pé de limão, a atirar cascas. Eu, pensaroso, olhar em vento e névoa nuvem, a divagar, respondo ainda longe: Deixaria este sol morrente, a lua nascente e este vento frio e morno que nos arrefece agora. Deixaria tu e ele, esta casa, estas folhas, aquelas galinhas lépidas. Deixaria o córrego que corre ali, deixaria, enfim, tudo o que não posso levar. E de ti, o que deixarias? Gorete tentando revolver-me. Tudo isso de que te falei agora, Gorete! Mas tudo isso fica, mesmo que você não morra. O sol, o céu, aquele barquinho de papel... E tu, e de ti?- Gorete você só enumerou substantivos. Eu disse sol morrente, lua nascente e vento morno. Eu os fiz assim, eu os quis assim, e neste instante eles são minhas criaturas e eu as deixo pra ti.
Gorete segue uma pomba com os olhos. As asas se esfregando no vento. A pluma se solta, flutua e pousa. A aranha ri. A rua corre para o rio e o Rio emite luz, reflete bondes, refrea gáveas, refrata cristos e corcovados. O vulto volta e vira vulva; a vara vela, a vida evola, a voz vacila... Gorete chora.
Chorando por quê, Gorete? Você gosta de mim, Fabão? Gorete, eu te adoro. Mas, só se adora a Deus, Fábio. Deus está em todas as coisas, meu anjo. Eu adoro o Deus que vejo em ti. Teu sorriso, tua nuca, tuas tranças, tuas axilas, a curva fofa da tua orelha... Vou te contar uma história, Fábio. Vai contando, Gorete... Antes me responde. Quando você pensa no céu, em galáxias, planetas... Você pensa em vida? Você vê vida?
Gorete, já sonhou com alguém que já está morto? Humm, Já. E este alguém tava vivo no sonho?- Huuummm... Tava!- Toda vez que alguém sonhar com um ente que morreu, no sonho este vai estar vivo. Acenando, nadando num pedaço de poço, voando contigo num espaço vazio. Mas vivo. Não se sonha com mortos. Sonha-se com quem morreu, mas no sonho ele vive. Só se pode projetar vida. Só se conjectura vida. Os deístas olham para cima e vêem Deus; outros buscam energias que propagam vida; outros, ainda, buscam sinais. Carl Sagan via inteligências, porque este era seu mundo interior; cérebros, mentes, inteligências. Eu vejo sóis, estrelas, planetas, galáxias, quasares. É assim que eles se mostram a mim e é assim que vejo a eles. Não os penso; pensá-los é não querer vê-los, é querer prevê-los, antevê-los. Olhando a lua, o luar, eu vejo a luz fria que emana dela, sua forma redonda. Se ela influi nas marés, me revolve e balouça o mar que tem dentro de mim. Se eu pensasse a lua ela ainda faria isto e eu nada poderia fazer, a não ser saber. Mas eu sinto-a! Ou só a sentirei se sabê-la? Aquela estrela? Está morta, diz o físico. Morreu quando? Morreu onde? Eu a vejo e não sou médium. Ela se mostra a mim. O cientista a vê por trás, por onde ela não se nos mostra. Daqui, de onde a vejo, ela continua ali, luzindo, sorrindo luzes para mim. Pensar é procurar pela morte, sentir é estar com a vida.
Gorete mirava o céu de luzes baças. Campos ermos, nuvens altas, os sons. Posso cantar uma musiquinha? Que musiquinha, Gorete?E ela baixinho: Um canto que aprendi na igreja, uma música de Deus. Toda música é de Deus, Gorete. Mas se quer cantar uma música, cante, se quer cantar uma música de Deus, deixe que Ele mesmo cante. Você conseguiria ouvir se fosse Deus cantando? Não está ouvindo, Gorete? O farfalhar das folhas, o tilintar dos galhos, o pipilar das gotas, o chuá das chuvas, o frufru do vento em teu vestido, o pulsar do teu coração, o trovejar?...
Lelê Teles, Brasília
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