- Sabe que temos um amigo em comum?
- Ah, é? E como você sabe disso?
- A primeira vez que o seu telefone tocou era o Hermano, reconheci a voz dele e ele a minha. Você nem imagina o susto que ele levou.
- Nossa! Como esse mundo é pequeno. De onde vocês se conhecem?
- Da universidade, estudamos
antropologia juntos. Quando seu celular tocou, aliás, quando ele vibrou
eu levei o maior susto, a madeira começou a tremer e a fazer um barulho
esquisito, quando olhei o telefone estava pra cair dentro do lago, ele
foi caminhando devagarinho e já tava pra cair nesse buraquinho quando eu o resgatei.
- Puta madre, que sorte! Devo agradecê-lo duas vezes então. Dali saíram
para um chopinho que se converteu em uma amizade que se arrastaria ad
infinitum. Na mesa do barzinho, trocaram as primeiras impressões. Gorete
falava muito e gesticulava enquanto falava. Fábio sorria, ponderava e
ouvia. Em pouco tempo a conversa já estava atravessada. Gorete proferia
sua fé religiosa e Fábio a contestava professando sua fé pela ciência.
- Puxa, nem sei por que a gente
começou a falar disso, Fábio. Vamos mudar de assunto. - Falar disso o
quê? - De religião. Já me disseram que discutir religião e política em
mesa de bar é uma roubada. - Pra mim não é, Gorete. Só pra quem não sabe
relativizar e contemporizar as idéias alheias. Eu não vou a bares falar
de bobagens, saio com os amigos pra trocar idéias, não pra conversar
tolices.
- Ainda bem. Mas por que mesmo a
gente enveredou por esse assunto? - Por causa do álcool, Gorete. Todas
as sociedades humanas se utilizam do artifício do uso de psicotrópicos,
alucinógenos ou rituais de transe para se atingir a transcendência. A
iluminação é sempre uma fuga do espaço cotidiano. Nosso aparato
cognitivo necessita de um pequeno desligar do mundo tangível para
absorver a possibilidade de transcendência. Às vezes, sob efeito de
qualquer psicotrópico, nós ativamos esse recurso primitivo e nos pomos a
cogitar sobre a religiosidade.
Gorete mexia nos cabelos, agitava os ombros e se fixava cada vez mais nos olhos de Fábio. Gorete nunca havia pensado o quão era bom estar com alguém que pensava diferente dela. E ao mesmo tempo respeitava as suas idéias e convicções.
- Você acredita no acaso, Fábio? Pergunta Gorete, inclinando o corpo para frente e falando um pouco mais baixo.
- O acaso não existe, Gorete. Fábio responde baixinho.
- Amigos, não, amigo.
- Tá, pega a tua agenda aí, Gorete.
Gorete
pega o celular. Fábio pede pra ela ler os nomes das pessoas que estão
na lista dela. Gorete vai falando, a partir da letra A. Adriana, Alice,
André Pataxó...
Fábio a interrompe:
- Pataxó, não é antropólogo também?
- Acho que é, ele é amigo de uma amiga minha, na verdade.
- Que amiga?
- Luísa Gunther.
- Ela é uma artista alemã, criadora de pangrafismos, esposa do Wesley, um gordito de barba, literato...
- Na verdade ela é teuto-brasileira. Puxa, cara, tô de cara.
- Nós nos aproximamos por afinidade, Gorete, e não por acaso.
- Mas nem temos tanta afinidade assim, cara. Eu sou religiosa e você incréu. Fábio faz sinal de cruz com a mão:
- Credo, Gorete. Que palavra horrenda, parece nome de enfermidade.
- Não deixa de ser.
Fábio dá uma gargalhada.
- Ta bom, Gorete. Voltemos.
Estávamos falando em afinidades. Quem você acha que estaria nesse cais,
ao pôr do Sol? Se voltarmos lá amanhã, no mesmo horário, vamos encontrar
alguém que nos conhece pelo menos de vista, de algum show, ou um
vernissage, ou temos alguém em comum que conhecemos etc. Não tem nada de
acaso nisso.
- Não sei não, hein. Meus pais,
por exemplo, se conheceram num trem em Paris. Ele é brasileiro e ela é
peruana. Isso é um exemplo do acaso agindo! - Tá, façamos como o Jackie
Estripador, vamos por partes. Eles são dois estrangeiros num trem em
Paris, certo?
- Certo.
– Gorete abre um meio sorriso,
encantada com a facilidade de polemizar e de convencer que Fábio parece
ter, ela não tira os olhos dos olhos dele.
- Seu pai fazia o quê nesse trem?
- Ué, viajava.
- Não, Gorete, viajava pra onde, ia fazer o quê em que lugar?
- Ah, ele ia para uma conferência de arquitetura numa universidade.
- E sua mãe?
- Ela dava aula nessa universidade.
- E o quê que há de acaso
nisso? Dois estrangeiros que iam para o mesmo lugar, tomaram o mesmo
trem. Mas cedo ou mais tarde eles iam acabar se encontrando. E como
começaram a conversar?
- Papai usava casaco peruano , ela perguntou se ele havia comprado no
Peru, aí começaram a conversar e viram que conheciam uma pessoa em comum
lá no Peru.
- Tá vendo, a sua teoria do acaso acaba de cair por terra.
- Ufa, você é implacável, hein?
De fato, nessa noite algumas
pessoas passaram pela mesa do bar e cumprimentavam um e outro, muitas
cumprimentavam os dois ou se surpreendiam com o fato de os dois se
conheceram, e como estavam no Beirute, um bar tradicional da cidade,
freqüentado por artistas e intelectuais, ali tudo funciona como uma
rede, quem não se conhece pessoalmente, conhece-se de vista e tem amigos
em comum. Os dois perceberam que mais cedo ou mais tarde eles iam
acabar se encontrando. Então, tudo passou a ficar cada vez mais
descontraído, trocaram cigarros, sorriam muito e Gorete não parava de
olhar nos olhos de Fábio.
- Em que você trabalha, Gorete?
- Estudo medicina.
- E qual será sua especialidade?
- Ah, quero trabalhar com
homeopatia. Com iridologia, mais precisamente. - Então é por isso que
você olha fixamente nos meus olhos, ta vendo se eu tenho problema de
baço, de bexiga, de estômago...
Os dois caíam na gargalhada.
Gorete ficou envergonhada de ele ter percebido que ela o olhava
fixamente. Depois do chiste a coisa se dissipou, Hermano apareceu, bebeu
um pouco, conversou e levou Gorete pra casa. Os dois trocaram telefone a
sair com muita freqüência.
Desde então, religião e ciência
pautava toda sorte de assunto em torno dos dois. Sempre no limite do
respeito pela opinião do outro. Numa dessas noites, próxima ao natal,
Gorete confidenciou que sentia uma certa mágoa do pai, desde a
pré-adolescência, por ele não decorar a casa deles com luzes natalinas
como todo mundo fazia.
- Era horrível, Fábio. O prédio
todo iluminado. Todos os apartamentos decorados, as lojas, a cidade,
tudo, menos a minha casa. Acho que a maioria dos filhos sofre por ter
pais intelectuais, sabia?
Fábio ficou em silêncio.
Uma lua alaranjada saía de dentro do lago. Eles tomavam vinho, sentados
lado a lado e aqueciam as mãos um do outro. Gorete queria falar sobre o
seu trauma de não ter noites encantadas de natal como todo mundo tinha.
- Quê que você acha do natal,
Fábio? Não to falando de Papai Noel, de guloseimas e presentes, essas
coisas. Estou falando dessa data da cristandade, da comunhão em torno da
história de Cristo. Você não acha que Cristo é uma invenção
supersticiosa pra enganar os trouxas, como diz meu pai, né Fábio? Fábio
respirou fundo e disse:
- Você quer saber mesmo a minha opinião, Gorete?
- Claro, eu tenho o maior
respeito pela sua opinião, cara. Fábio senta de frente pra Gorete e de
costas pro nascer da lua. Segura nas duas mãos da amiga, olha-a
fixamente nos olhos e fala baixinho:
- Gorete, Jesus é um mito!
Lelê Teles