terça-feira, 25 de novembro de 2008

E se você estivesse aqui

Isis, minha amiga do coração.


Hoje mesmo eu estaria, se aí estivesse, a atirar pedras n'água e ver os círculos concêntricos se abrindo pela força centrífuga que a pedra suscita. Como um náufrago que encontra a garrafa e bebe a carta que nela habita.
E a cada pedrinha, uma nova ondina rodopiando na minha cabeça, chacoalhando tudo para por tudo no lugar, só para desarrumar depois; infinitamente. Se aí estivesse sentiria o mesmo que você sente.
Se tivesse aí, agora, a ver o laguinho que a cachoeira produz, estaria como você, amor; estaria como o homem seminu que morreu na cruz: completamente dentro de mim e todo exterior.

Lelê Teles, Brasília

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

mi payasita

minha linda palhacinha


















Jackie

Domingo, dominus dei. Antes de começar a leitura de Padre Antônio Vieira abro o imêio. Há um somente, e é da Jackie. "Para Alfredo, com carinho". Abro, uma foto linda. O ambiente é iluminado por luzes que vêm de velas acesas, aprumadas por belíssimos castiçais. A luz realça e contorna o escuro, magnífico artifício. Seguramente é a mesma luz que utilizava Caravaggio, Rembrandt e Velásquez. 
O cenário é rústico e belo: uma poltrona aveludada e de cor fulva, uma ave empalada e igualmente aterciopelada, uns tecidos finos e translúcidos sobre o resto da mobília que compunha a ampla sala onde a foto fora feita. 
Em destaque: uma mulher, imagem feita por cima dos ombros, ela levemente inclinada para tocar os pés, as costas nuas, as pernas nuas. De frente e agachada, uma outra mulher de feições exóticas. A mulher que está sentada é Jackie, conozco sus espaldas, a mulher que a defronta está com um cântaro na mão, enquanto que a outra mão está delicadamente segurando um dos pés de Jackie. 
Os pés estão besuntados, pela forma com que Jackie se curva para frente parece que ela vai repreender a moça do cântaro. Fico firmemente absorto, a foto me suga, mas não consigo compreender o que quer dizer. Em seguida vem outra foto. 
Agora nota-se uma alcova, um pálio com sedas transparentes, tapetes forrando o chão, dois homens seminus de pé. Sentada, à cabeceira da cama, está Jackie. Veste o que seria uma camisola, mas o ombro que se mostra está desnudo. A tomada é lateral e vemos a moça de frente para o espelho, nota-se a dupla imagem, ela se contempla simplesmente. 
A cena é linda, fico nela por alguns minutos. Os lábios estão entreabertos, os cílios despencam, o seio se mostra meigo. O lugar parece um cenário feito só pra estas fotos, nunca vi nada em nenhum lugar parecido a isso, em nenhures, ou nusquam, como se diz em latim. 
Mas ainda havia uma terceira foto, uma escada enorme e um pouco espiralada. Embaixo da escada, ao pé, estava Jackie, esperando alguém. Acima, ainda com a iluminação das velas que tremiam nos castiçais, apenas um vulto indistinguível; na escada subiam mulheres nuas de um lado e desciam homens nus do outro.
No final de tudo um textinho curto: Adorável Alfredo, feliz por você ter matado a charada do outro imêiu com tamanha argúcia, em anexo tô mandando uma foto exclusiva pelo seu merecimento. Quer mais? Então vamos a isto: Jefferson, o iníquo, nos remonta a Protágoras; Lula, ao chamar pra si o discurso ético compreende Protágoras em Jefferson e se faz medir medindo-se. Jacó. Beijos. Eternamente, Jackie.
 

Que jactância, a foto era muito mais do que o que eu merecia por um simples jogo de charadas. De costas, deitada, nua, com o corpo cheio de óleo aromático (imagino), um pote pequeno com óleo ao lado. Ela sobre a esteira. Entrava uma luz clara e amarelada pela janela, as cortinas adejavam lentas. Ela estava de bruços, com a perna esquerda esticada e a direita levemente curvada, como que fazendo um P com as pernas. No pescoço, ela está de cabelos curtíssimos, há uma tatuagem em hebraico escrito "e o verbo se fez carne". A foto foi feita a partir dos pés, a vista era deslumbrante. 
Fiquei boquiaberto, as mãos pediam cigarro, acendi. Coloquei a foto como protetor de tela e fui digerir o que tudo aquilo queria dizer. Se ficasse olhando a beleza das fotografias iria sempre viajar para os antípodas da mente, como diria Huxley. Peguei um livro de Antônio Vieira e fui pra rede descansar. 
Jefferson, Lula, Protágoras, Jacó. Uma escada, uma moça com um cântaro, velas e castiçais, nada mais. Vou montar, quero mais destas lindas fotografias. Espalhei as palavras do meu puzzle pelo chão imaginário e fui montando com a mente, peça por peça. O que tem Jefferson, Protágoras, Lula e Jacó a ver um com o outro? Encontrei o elo entre Protágoras e as bravatas de Jefferson, uma parte tá pronta. Lula compreende Jefferson, pronta a outra parte. Que diabos Jacó faz aqui? 
As fotos, as imagens devem ter algo a ver com isso. A moça do cântaro nada tem a ver com Jacó, montei todo tipo de combinação e nada. Mesmo porque, assim, sem sobrenome, este Jacó só pode ser o personagem bíblico. Puta madre, claro, o cântaro nos remete a Pedro (Domine, tu mihi lavas pedes). Jesus lavando os pés dos discípulos. Pedro, como sempre, hesitante (tu mihi, vós a mim?). Por isso Jackie parece repreender a moça que lhe vai lavar os pés, era uma dica a que texto consultar. Então, lembrei-me de um Sermão de Padre Antônio Vieira onde ele fala da encarnação de Deus, todo confuso o texto, talvez o mais confuso de Vieira. Mas há ali a imagem da escada, Jacó vê uma escada que vem do céu e anjos subindo e descendo, ele percebe que não pode subir e observa que Deus não desce, então ele se dá conta da tamanha distância entre Deus e o Homem e ratifica a imagem dos anjos como seres intermediários e intermediadores. É disso que se trata, vamos à frente. 
 

Jefferson é um gatuno de primeiro time. Um "sócio" seu foi pego nos Correios com a boca na butija. A casa caiu. Percebendo-se no pior dos mundos, Jefferson lembrou-se da ópera, e percebeu que tudo começa com um crescendo até ter um ápice, as pessoas estão prontas pra essa fórmula, por que não tentar? Então dedurou todo mundo, jogou merda no ventilador e misturou fatos reais com invenções absurdas, como a de duas malas enormes pra levar 4 milhões de reais, esta quantia cabe em duas valises. 
Então montou um esquema, denunciou uma operação de roubo escandalosamente gigante, acusou todo mundo e livrou somente Lula da Silva. O povo, que deveria atirar pedras em Jefferson já o via como um injustiçado querendo fazer justiça, já não saía de casa pra não ter que dar autógrafo; de vilão a mocinho em um ato. O mais absurdo é que no Roda Viva Jefferson se mostra corrupto, mas diz que em seu conceito não o é, disse que não é corrupto mas afirmou que a política corrompe e que ele já está na política há mais de 20 anos, e repete o que todo mundo sabe, Lula é um caro ético e justo, com isso agrega à sua imagem este homem ético e justo, um truque. 
Aí está Protágoras, "o homem é a medida de todas as coisas". No tempo de Protágoras o homem não significava a humanidade, mas sim o indivíduo. Jefferson mede tudo a partir de si mesmo, e a partir dele tudo é mensurável, inclusive a ética, e era disso exatamente que falava Protágoras. No mesmo programa em que Jefferson disse que as pessoas poderiam acreditar nele porque ele falava a verdade, disse que defendeu Collor de 103 acusações e Collor se livrou de todas. Se temos que acreditar em Jefferson então devemos crer que Collor é inocente! 
A outra parte diz "Lula, ao chamar pra si o discurso ético compreende Protágoras em Jefferson e se faz medir medindo-se". Bom, aqui fica claro que Lula compreendeu a aproximação conceitual de Bob Jefferson e saiu-se em defesa de si mesmo.
 

Agora vejo a leitura que Jackie fez do pronunciamento do presidente remontando a uma metáfora bíblica: In principio erat Verbum, Verbum caro factum est e em seguida: Et habitavit in nobis. O verbo se fez carne e habitou em nós, porque não disse habitou entre nós, perguntava Antônio Vieira no Sermão do Mandato. Se a ética era algo que estava entre Lula e os seus, então o presidente teria que ter um partido inteiramente ético e andar com pessoas inteiramente éticas. Se Deus está entre nós ele não pode estar em todo lugar, mas se ele está em nós ele está por toda parte ("Enquanto encarnado, se estava Cristo em uma cidade, não estava noutra: enquanto sacramentado, não só está em todas as cidades, senão em tantas partes da mesma cidade em quantas hoje o temos", Vieira). 
Lula disse que a moral ele aprendeu com os pais e passava para os filhos, não seria um mandato passageiro que determinaria se ele era ou não ético. Assim, Lula trouxe pra si o discurso protagórico e chutou Jefferson, "eu meço a ética e a moral porque ela parte de mim, é um princípio meu. Jefferson é um canalha que se agrega aos outros para agregar valor a si mesmo". No velho testamento diz Davi: Abyssus abyssum invocat, um abismo chama outro abismo. E estão os dois à beira do precipício, Jefferson não tem tanta bala na agulha, os gestos são repetitivos, a oratória é cansativa, a voz não é muito boa, outro dia voltava da dentista e passei debaixo do prédio onde ele mora e ouvi o que chamam de um homem cantando óperas; sinceramente, francamente!
 

Assim, por meio da escada de Jacó vemos que Lula não desce até o patamar de Jefferson, e este não subirá jamais ao trono onde se senta o ex-operário. Os mensaleiros são os querubins e serafins do nosso presidencialismo cínico, dependente de apátridas que sobem e descem a todo instante e servem a dois senhores. Matei mais uma charada. Quando será que Jackie volta ao Brasil?

todo en la vida es sueño

A magestosa e caríssima Ponte JK. "Uns querem transformá-la em cartão-postal; outros, em inquérito policial" (GOG).
Se chamava Washington. Aliás, chamavam-no Washington, ou melhor o seu nome era Washington, mas todos chamavam-no Uoshto. Creio que ele próprio não sabia a grafia de seu nome; nasceu assim, meio torto, claudicante, de viés. Sonhava como todo menino, dormindo e acordado, sonhava mais acordado que dormindo. O seu sono não era tranqüilo, tinha sempre um rá tá tá tá, um tiroteio noturno, vizinhos se esbofeteando de madrugada, cachorros dando carreira em desocupados, os cachaceiros que cantavam ao longe.
Mas mesmo assim ele sonhava...
...no sonho ele flutuava; pétala que se desprega e vai descrevendo um poema no ar. A gota de orvalho cintila náufraga a anunciar o silêncio sombrio das fragatas a singrar. Uoxto sonhava com sabores inauditos, texturas nunca dantes experimentadas, sonhava também com o olfato. De facto criava um mundo inefável na fantasia onírica.
Mas o sonho não é reminiscência, não é lembrança da vida em vigília? Oshto, como não tinha tempo pra teorizar - nem método - ia assim, sem querer, desafiando as teorias que pretendem dar conta do material singular que permite ao homem uma dose de torpor e encantamento. Sempre lhe vinha o que ele nunca via, como um fomentador de desejos. Os sonhos criavam nele desejos e os satisfaziam, como faz a publicidade; não, não, a publicidade apenas fomenta desejos, o dinheiro é que os sacia. Já sonhou em línguas que ele nunca ouviu, parlamentando com autos signatários, articulando bem e descrevendo sintagmas dentro de uma estrutura ignota.
A mãe o acorda aos berros: "Óxto, acorda doido, vai procurar alguma coisa pra cumê que tua irmã morre de fome enquanto tu fica aí, como fi de adevogado, de boca aberta".
Toda manhã era assim, sacolejado pela mãe, levantava vôo em direção à cidade em busca do que fazer, na ânsia do que comer. Morava debaixo da ponte JK, também conhecida como terceira ponte, que liga a cidade de Brasília ao bairro do Lago Sul, que tem o IDH igual ao da Noruega. Ali, debaixo da ponte, uma favelinha ia vivendo com a vizinhança abjeta que descarregava neles todos os dejetos diários. Além do alarido do tráfego trêfego. Todas as manhãs Oshto despertava ao som das embarcações: lanchas, iates, kite surf, esquifes, caiaques etc. Brasília é a terceira cidade brasileira em número de embarcações náuticas!
Óshto celebrava aquele playground aquático onde ele jamais estaria fisicamente, mas já sonhou com um mar azul e flutuante, ele nadava em bolhas d’água no refluxo matinal de nove luas em planeta ignoto. Dançava ao som das nuvens em deslocamentos.
Se espreguiçava ao despertar, como faziam os cães e os gatos; mimeticamente. O Lago Paranoá, esta maravilha artificial que margeia toda a cidade, tem as águas verde-musgo em alguns pontos onde a balneabilidade é proibida, justamente no ponto onde a mãe de Uóshto, e outros renegados, estendeu a lona negra que é o seu abrigo. Fétida casa, úmida e sombreada pelo umbral da ponte.
Nunca tinha o que comer amanhecendo, ritualisticamente ele punha as mãos em concha e bebia um trago das águas verdes da parte poluída do lago. Cria que o verde era devido ao alto teor nutritivo da água. Conselho da mãe: "Tome uma caneca dessa água todas as manhã, aí tem vitamina, meu filho. Isto é merda de ministro, de deputado, médico e adevogado. Esse verde aí é muita rúcula, alface, brócolis, aspargos, toda a sorte de verdura e leguminosa que possa existir. Nunca se viu uma água tão nutritiva como esta".
De facto Uoshto tinha uma barriga gorda, efeito da água, não se sabe se benéfico ou maléfico. Certo dia, um garotinho de quinze anos tomou muito whisky e cheirou cocaína a noite toda, pegou a lancha do pai e foi dar cavalos-de-pau na água. Desgovernou-se e entrou facilmente na casa de lona preta.
Washington tinha visto a festa da posse do presidente pela manhã e passou o dia inteiro ocupado com isso, o presidente havia sido gente como ele, quiçá tomou água nutrida como ele, por isso suportou. Nesta noite Washington sonhava que presidia uma cidade repleta de pirâmides, era assim como o rei Pacal, dos Maias. Amante das artes e das nobres edificações...
A lancha esmagou mãe, filho e filha. Em algum lugar está Washington em sonho, talvez embalado pela mística de Pacal em piramidais digressões estelares. Porque todo en la vida es sueño.




Lelê Teles

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

seus olhos garços

a belíssima paula lagrotta, je suis enchanté...

Tem uma coisa magnética nos seus olhos garços que não cabem nos meus versos, porque imantam tudo ao seu redor, como um buraco negro que se alimenta de universo; tem uma flor imarcescível que desabrocha quando você abaixa o seu olhar tímido, uma lâmina lânguida que dá vontade de lambê-la; uma lírica líquida.


Tem uma coisa aí que tenho medo de saber o que é realmente, temo decifrá-los e eles me devorarem.


Dá pra sentir o cheiro fragrante dos seus olhos como a gota de um suor que escorre dos lacrimais... tem uma coisa nesses olhos que é demais!


Lelê Teles, Brasília



sexta-feira, 14 de novembro de 2008

cidadãos do mundo

Ainda na legenda: Pierre Weil, Lelê Teles, Caretinha, Gilmar, Geovane, Tarsila, Marck Sacco, Pajman, Gustavo, Moranguinho, 3 Estrelinhas, Jonisval, Andréia, Vanessa, Sergie, André, Dr. Fahad...
Turma formada por jovens anarquistas e religiosos ligados á fé Baha'i, à Rosa Cruz, Brama Kumaris etc. Esse era o nosso sonho de mudar o mundo, por meio da paz!

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Morre Pierre Weill






A ave holística: Ave, Pierre, Evoé.

Voa, vovô, voa
Vai, Pierre, Weill
Singra no ar com tuas asas alvas
adeja no mar como uma pomba náufraga

arrebenta sereno na beira do cais.

Pra sempre a lembrança:
A maturidade encanecida nos cabelos comprova
A vivacidade e a candura de um belo rapaz
Na maternidade estelar renasce como uma supernova
Vá Pierre,
em paz!

Lelê Teles, Brasília
Fundador da Universidade Internacional da Paz (Unipaz), o psicólogo e educador francês Pierre Weil, 84 anos, morreu na noite de 10 de Outubro em Brasília. Em 1994 eu estudei na Universidade Holística Internacional (Unipaz), e como foi delicioso, como foi prazeroso aprender com esse grande mestre.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

quarta-feira, 21 de maio de 2008

lindas

lenas


ela enche meu coração de sonhos, de beijos e de desejos; preenche minha alma, afaga meu ego, afoga empáfias, refuga 'a refregas, refrigera-me a infância que me aflora agora.

temos giulita, uma joaninha sapeca, lépida e inteligente. amiga-nos, ama-nos, une-nos; ludicamente. temos como que um coração que se reparte em três, mas que não se divide. temos tantos momentos felizes juntos. tantos sorrisos, tantas ternuras. tantros... tantras...

e temos, ainda, uma vida inteira pela frente.


lelê teles, brasília

ecofagia ou eco-lógica

eu e ela
QUEREM A FLORESTA VIRGEM
OUTROS A QUEREM DEFLORAR
AFLORAM ANTÍPODAS DIRETRIZES
REFLORESTAR, DESENVOLVER OU DESFLORESTAR

-------------------------------------------------


QUANDO FALAM EM MEIO AMBIENTE
COGITA-SE FAUNA, FLORA E PURO AR
A QUESTÃO É QUE NO MEU AMBIENTE
HÁ MUITA GENTE E BARRIGAS A ALIMENTAR

---------------------------------------------

NÃO QUERO UM JARDIM ANTROPOLÓGICO
COM SILVÍCOLAS NA IDADE DA PEDRA
NÃO QUERO ESSE MUSEU VIVO, ETERNO E ILÓGICO
DE QUE A NOVA ERA É A ERA QUE JÁ ERA

-----------------------------------------


O QUE EU QUERO É
QUE HOMENS PLANTAS E ANIMAIS
ÁGUAS, PLÂNCTONS E CORAIS
VIVAM CONTÍGUOS E FAGOCITÓSICOS
CONVIVAM CONTIGO E COM OS DEMAIS


Lelê Teles

seu estrelo e o fuá de terreiro


os maravilhosos músicos-bailarinos do Seu Estrelo e o Fuá de Terreiro


sim, nós temos um mito.



eu vi nascer um calango na cabeça do amigo. diferente de todos os calangos do cerrado, esse nosso pequeno dinossauro era um pterodáctilo empoeirado, um pégasus que rasteja, o mítico Calango Alado. e toda uma fauna exótica nascia com ele: elefante, gavião, caliandra, Sinhá, Biu, Cantadô, Pescadô... e cada minina bunita, cada pé de fulô.


o folguedo se assanha a gritos, batuqes e apitos. a gente se assenta ao rito, à roda, ritmo e riso; e o troço mais bonito é o desenrolar deste mito. o povo se refestela, a fauna se gravanha, o coração da gente martela, a alma da gente se banha.


Agradeço mil vezes a Tico, demiurgo criador encantado, que tem a alma suja de mangue e tem no sangue a poeira líquida do cerrado.



Lelê Teles, Brasília


segunda-feira, 31 de março de 2008

Gorete e a ressurreição


as duas irmãs estão à frente, tensas e chorosas. logo em seguida, Jesus Cristo.


em segundo plano a turba curiosa, estupefata. à frente, com passos lentos, vai surgindo o moribundo agora vivo. Assim que transpõe o umbral da cova, a figura de Lázaro vai sendo preenchida pela luz quente das áridas paragens da Judéia. a turba recua um pouco, boquiaberta e assustada. Marta e Maria avançam lentamente para próximo do irmão.



Jesus permanece imóvel, impávido, incólume. Lázaro, então, rompe o silêncio: mas o que significa isso?, fala, olhando para as ataduras cheias de chagas que envolvia o seu corpo outrora moribundo. quem fez isso comigo?, pergunta, enfático e furioso.



os curiosos ficaram ainda mais assustados, recuando um pouco, chocados.


não seria fácil pra nós vivermos sem ti, Lázaro! disse Maria, sua irmã, enquanto Marta a afagava. Lázaro, colérico: então foi pra satisfazer vocês que me trouxeram de volta? quer dizer que enquanto vocês viverem eu terei que, uma vez morrendo, ressuscitar para fazê-las feliz, até que as duas morram?!

Jesus, então, resolve falar: Lázaro, Deus é contigo. felizes estão as tuas irmãs, e cheio de júbilo está o povo que presenciou mais uma das graças do Pai.



Lázaro, então, num ataque de fúria, se lança para cima do Mestre da Galiléia. por quê você fez isso comigo, cara? por quê me trouxe de volta?! e Lázaro olhava no fundo dos olhos-pélagos do Deus em carne. furioso: Você sabia onde eu estava; o que mais me indigna é que Você sabia onde eu estava! se Você teve o poder de me trazer de volta, Você poderia ter me perguntado se eu desejava voltar. Mas não. Você quis satisfazer a vontade de minhas irmãs e seguir na Sua campanha, no Seu proselitismo profético, às custas do meu amargo retorno. eu quero que Você me mande de volta, agora!


a turba urra de curiosidade, uns olhando para os outros, todos interrogativos. Lázaro volta para a tumba de onde saíra - sinistro ato -, e de lá grita: Jesus... não quero que ninguém entre aqui, nem Você e nem minhas irmãs, até que Você me mande de volta para o lugar de onde me tirou, sem pedir a minha permissão. as irmãs choram convulsivamente. Jesus coça a cabeça... cai o pano.


porra, Fabão. mas isso é muito forte. qual é o sentido de se encenar isso, cara? Gorete, tá afim ou não de dirigir a peça? não sei Fabão, lê de novo, tô confusa.


estávamos, eu e Gorete, num ritual nayambing, na chácara de uns amigos rastafaris, da Guiana Inglesa, ouvindo a deliciosa música gospel dos rastas, e o retumbar dos tambores sincopados. era lua cheia, e eu realmente gosto de estar com esses caras, é uma religião deliciosa e interessante a deles, e eles são puros e verdadeiros, isso me encanta, a mim e à Gorete.


numa pausa pra comer, eu lia pra Gorete uma peça que escrevi sobre Lázaro e gostaria que ela dirigisse. Gorete me disse que tinha white widow e ia acender um só pra ver se eu conseguiria convencê-la a dirigir a peça. como os tambores do nayambing, o white widow é irrecusável.


eu disse a ela, enquanto fumávamos, banhados pela lua e ao som longínquo dos tambores: Gorete, a ressurreição de Lázaro é uma contradição à pregação do mestre. como assim, Fabão?


Gorete, lembra que em Atos dos Apóstolos 3:1-10, Pedro e João encontram um coxo à porta do Templo, a esmolar? "não temos ouro nem prata, mas o que temos lhe damos, e fez o coxo andar normalmente", completou Gorete. e nós Gorete, não chegamos a conclusão no dia em que lemos isso juntos que não fazia sentido com a doutrina do Cristo? de facto, Fabão, chagamos a conclusão que o Mestre não curou ninguém que não tenha buscado a cura, a fé é que curava as pessoas, segundo a doutrina do Cristo; Pedro foi arrogante em seu proselitismo, fez o que nem o mestre teve o despudor de fazer. isso mesmo, Gorete, o homem pediu esmola e não que lhe retificassem as pernas; Pedro não podia se arvorar como mágico; a cura milagrosa e a fé caminham juntas.


no entanto, querida, em Lázaro, vemos uma única vez Jesus intervir por alguém que não clamou por ele. porra, Fabão, é isso! e Jesus, quando foi ressuscitado por Deus, ficou entre os vivos poucos dias, só até dar as últimas instruções aos discípulos, depois foi para as tais outras moradas, onde vive Jacó e Elias, que também não morreram, foram arrebatados para o "céu". por que diabos ele fez Lázaro viver de novo num lugar cheio de cegos, coxos, entrevados, mancos, prostitutas e sanguinários legionários romanos? o cara tava no paraíso! né não, Gorete?! e quer saber mais, querida, os egípcios também criam em ressurreição, por isso se enterravam com seus súditos e familiares, envoltos a todas as jóias que tinham. criam que, não importam para onde fossem, voltar pra cá seria sempre melhor. o Mulçumano que se explode por aí, crê no além, lá ele sabe como é, tem Alá e muitas mulheres virgens esperando-o para amar lascivamente. o cristão não sabe o que é o paraíso e talvez por isso não creia nele com tanto fervor. lembre de Peter Tosh: todo cristão quer ir pro céu, mas nenhum quer morrer! minha vó, Gorete, agonizava no leito de morte, já velha, sem andar, sem sentir o sabor das coisas e tendo que ser lavada por outras pessoas, assim mesmo ela se apegava ao terço e pedia a Deus que não a mandasse para o paraíso, ela queira continuar viva, mesmo que em condições degradantes; eu cheguei à conclusão que minha vó não cria com fervor que havia uma outra vida e um outro lugar.


os cristãos, Gorete, não contestam a ressurreição de Lázaro porque no fundo não crêem que Lázaro pudesse estar em um reino de bonança e paz, eles acham lindo a ressurreição de Lázaro, acham normal que Cristo tenha trazido alguém da "outra morada" para reviver no deserto da Judéia. ora, se Lázaro vivia aqui e morreu, logo ele vivia em outro lugar; elementar. ao voltar pra cá ressuscitado, teve que morrer no outro lugar onde vivia. a ressurreição é, por tanto, além da volta à vida, uma segunda morte!


e a onda do white widow bateu. ouvíamos o som longínquo dos tambores, de boca aberta e quase babando. e não dissemos mais uma única palavra. A lua também nada disse.




Lelê Teles, Brasília.

sábado, 29 de março de 2008

quinta-feira, 27 de março de 2008

terça-feira, 18 de março de 2008

as ninfas e o sátiro

Nymphs and Satyr - William Adolphe Bouguereau

sexta-feira, 14 de março de 2008

terça-feira, 4 de março de 2008

segunda-feira, 3 de março de 2008

a quem servem os motoboys?


Ana Male, quer tudo na mão

Ela se chama Ana Male, nome de ariz pornô. Ela detesta que lhe lembrem disso, toda hora eu digo isso pra ela. Não só o nome dela é um palíndromo, ela é toda palindrômica. Tem várias conversas atravessadas, você não sabe se está indo ou se está voltando. Outro dia, no trânsito, ela reclamava do excesso de motoboys e da imprudência deles. Você detesta eles né, Ana; perguntei. Ela começou a falar sem parar, disse que eles eram mal educados, mal instruídos, selvagens e que a maioria deles nem tinha habilitação. Sabe como é, quando uma mulher começa a falar sem parar e acende o cigarro, que ainda nem terminou, no outro é melhor ficar calado. Esse é o início da histeria. Deixei Ana falar. Tudo o que ela dizia era puro preconceito. Eu aumentei o som, tocava um delicioso hardcore do Rattus, da Finlândia. Chegamos à casa de Ana Male, 10:11 da noite.

Ana Male acabara de iniciar um curso de dança do ventre, embora fosse uma estadunidense apaixonada por hardcore feito na escandinávia, como eu. Eu tava louco para vê-la dançar. Colocamos alguma coisa no narguilé e ficamos baforando. Ela voltou da cozinha e disse que ia pedir uma pizza, perguntou se eu preferia pizza ou comida chinesa. Eu disse que não queria nada que fosse entregue por um motoboy estressado. Ela ficou parada sob o umbral da porta, me olhando. Como ela ficou muito desajeitada, começou a sorrir e fez que não era com ela. Depois insistiu: Cara, tem uma pizzaria aqui que faz a melhor pizza da cidade e sabe qual é o melhor? Se eles não chegarem aqui em trinta minutos após o pedido a gente não precisa pagar! Ligou e pediu a pizza, nem lembro o sabor.

Nossa, Ana, você é sádica hein? Você está sorrindo dessa bobagem que acabou de me falar? Ela ficou muda. Senta aqui, Ana. Ela sentou e baforou o skunk. Ana, em São Paulo morrem 2 motoboys por dia; em Goânia, um a cada 36 horas... e fui listando; quando não morrem, esses caras são vítimas de ocorrências no trânsito, que normalmente acarretam problemas como hemorragias internas, ossos quebrados e, em alguns casos, perda de membros como braços ou pernas. Eles correm, Ana, não porque sejam loucos e mal educados, eles correm porque pessoas como você têm pressa!




Ela se levantou. Eu continuei: Ana, nenhuma pizzaria vai te dar uma pizza de graça... A daqui da quadra dá, cara, como eu te falei. Ana, a pizza não sai de graça. Se o motoboy não chegar em 30 minutos na sua casa, onde você está confortavelmente sentada e fumando skunk, quem paga a pizza é ele.





Ela me olhou com dois olhos enormes. O motoboy, Ana, tem que vir muito rápido pra entregar sua pizza a tempo. Ele tem três alternativas: ou entrega a sua pizza em 30 minutos, ou paga com o salário dele ou com a vida! Para isso ele fura sinal, corre pela calçada onde caminham os velhinhos e as crianças, corta os canteiros, não respeita a faixa de pedestre... Não é o motoboy que cria uma situação de caos no trânsito, Ana, é você!




Ela ficou imóvel por alguns segundos. Depois pegou o telefone, ligou e cancelou a pizza. Pegou as chaves, me pegou pela mão e descemos o elevador sem falar nada um com o outro. Ela dirigiu até a pizzaria, foi ao caixa e pediu a pizza. Enquanto esperava ela foi conversar com um motoboy que aguardava do lado de fora, pronto pra fazer entrega. Demorou um pouco, fazia perguntas e meneava a cabeça afirmativamente. Depois ela veio, me deu um beijo na boca, me olhou nos olhos e me agradeceu, envergonhada. Pegamos a pizza, compramos um vinho e nunca mais falamos nisso!


Lelê Teles, Brasília.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

sobre o trabalho

ele, infante


O cara me perguntou, Lelê tô desempregado, tem alguma coisa aê? E eu disse, rapaz, a coisa tá tão feia que até celular tá procurando serviço.

Mas tem trampo por aí, cargo: pentear macaco, pintar listras em zebra, desenhar asa de borboleta, fazer chapinha em leão, catar piolho de cobra, pintar unha de onça braba, desentupir cu de elefante, aparar bigode de ariranha, doar sangue pra morcego e escovar dente de tubarão.

Mas não, fulano quer ser funcionário público, ficar lááá... tirando xerox, lixando a unha e falando no msn. Amolecendo a bunda, engordando a pança e parasitando o estado!


Lelê Teles, Brasília

hannah

pra hannah

Se um dia eu te convidar pra beber, te convidarei pra bebê, pra ninar, pra fazer carinho e cafuné.

Na hora que te convidar pra comer, vai ser pra fazer bebê, pra fazer morder, para despetalar.

Se te convidar pra caminhar, será pra correr, pra gente se esconder, ver a lua sumir e o sol nascer.

Quando eu te convidar pra morrer, vai ser pra desfalecer, pra tantriar, pra te comer!

Lelê Teles

toca let's lynch the landlord


Se o DJ é bom, toca dead kennedy's

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

poesia em 10 cordas, dudu maia



Adoro a poesia que Dudu Maia extrai de seu bamdolim.

très jolie

angelina c'est très jolie


O nariz foi feito pra segurar os óculos
e os lábios pra soltar os ósculos


Lelê Teles

tanta coisa a gente quer ser na vida

hoanna


Sabe como é...
Meu irmão quer ser moça.
Minha irmã: tirar foto, tirar roupa.
Eu só queria ser a piteira de um narguilé,
ou qualquer outra coisa que te beijasse a boca.

Lelê Teles

agora somos três


A primeira dançava leve em meus pensamentos
Desde há muito
Eu a imaginava em imagem vulva
Sêmem ava um poema em seu corpo
E acordava porejando suores, balbuciando beijos

Arredia e entregue, deliciosamente plena de malícia
Seus olhos e olhares imantavam-me em encantos
Defloravam-me em carícias


Ela é como uma santa impudente
Ígnea como um raio indecente
Meu jardim de delícias
A outra é uma deusa egípcia

Dança também em leves rodopios
No caleidoscópio de meus encantos

O ventre agarra-me como grilhões
Os olhos fulminam-me vadios
O sorriso me lava em prantos
Com elas me elevo cantante
Elas me levam galantes
Juntos somos três amantes


Como um Adão e duas Evas
Desnudos na mata perdida
Juntos somos o pecado
Eu, Nefertari e Brida
Lelê Teles, Brasília


gorete y el ojo de dios


el brillo fluorescente de esa estrella es consecuencia de la expulsión de los gases desde el centro. Esa es la rarísima Nebulosa de la Hélice, creada al final de la vida de una estrella. Solo se la puede ver cada 3,000 años.

gorete está a mi lado, mirando el imagen en un planetario. Sus ojos preguntan, pero mismo que sus labios sepan la respuesta no tienen, ahorita, ganas de decirla. Mi espíritu se aleja de mi cuerpo volando plúmbeo y flátulo, pesado y levísimo.


desde aquí, yo veo una miríada de imágenes e imagino sus sonidos, sus olores, sus sensaciones. Gorete, siempre interrogativa y deísta, mira El Ojo de Dios y se siente una venturosa chica elegida por la Providencia; a mi me parece bien que así le sea, a veces tengo ganas de sentir lo mismo que siente Gorete en algunas ocasiones, su creencia amplifica su placer, su deleite; yo, por mi lado, tengo siempre que racionar lo que siento, haciendo con que la cosa sea una mala onda, sin una plenitud!


intento una ves más mirar El Ojo de Dios, aunque no lo consigo, pero si miro los ojos de Gorete es como se contemplase todas las elucubraciones de las teologías; Gorete es una miríada de emanaciones divinas, aun que ella no lo sepa.

Lelê Teles, Brasília

camilinha, como uma coppelia


minha queridíssima Camilinha


O sorriso dela socorre a linda gota de prazer que lhe escorre. Lejos, se muestra como se fuera una muñequita, una Coppelia. Cerca, abre-se como pétala; como leve pluma, levita; como se negasse o peso que a gravidade lhe dá ao corpo esbelto: uma pluma plúmbea!


Com os mesmos olhos que Franz mirava Coppelia eu via Camila: sua imobilidade movia tudo o que era vivo ao redor, movendo-se tudo parava. Meus pensamentos saltam, impulsionados por um demi-plié, a onírica mola de sonhos que me eleva e me leva a ela, e assim encontro minha entropia. Uma miríade de sensações palpitam corpo adentro.


Agora mesmo a vejo na varanda. Nossos olhares bailam num pas-de-deux de sorrisos. Hoje tenho uma caixinha dentro do coração. Nela, uma bailarina rodopia frente ao espelho, acompanhada por doces melodias que flutuam como bolhas de poemas ao ar. Com a graça das ninfas-nuas. Como a linda imagem de Camilinha a caminhar em nuvens.

Lelê Teles, Brasília

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

pangrafismo

Homenagem à arte pangráfica de Luiza Gunther

O alimento pangráfico mata a fome das bocas d'alma, o elemento pangráfico se arvora numa voraz investida contra os vestais, os falsos pigmentos estéticos, os pseudo dizeres eufêmicos. O ser pangráfico é livre e não tergiversa, não retrocede, sua pulsão é de vida, sua pulsação é vivida por aqueles que compartilham o existir libertário. O pangrafismo é um elemento oriundo do corpo de Gaia, acompanha a onda votiva dos astros, o holomovimento, a holopraxis, a dança entrópica do caos!
Pangrafismos são formas de palavrear imagens e imaginar expressões por meio das imagens-palavras. É uma mixórdia, uma miscelânea, uma mistura de elementos visuais imaginários, na criação de uma imagética real, num desdobramento lúdico e lírico; lépidas palavras desafiam a inércia e a alienação; pangrafismo é uma pulsão revolucionária, é o dínamo das vozes incorformadas, lenitivo dos que buscam os antípodas, atilho dos rebeldes, emético dos punx, dos junx, dos blax...

Lelê Teles, Brasília


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Fuleiragens aforísticas

Pescador, Tarsila

Fuleiragnes Aforísticas Políticas

O escroque, influenciado por políticos, se põe a pensar:

Ora, se até o Celso Pitta, eu também quero pitar.

Fuleiragens Aforísticas Existenciais
Razão para os homens e ração para os animais.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

sepultura

sem legenda!

poema para os pássaros e para os peixes

minha priminha, Mari



O Pássaro não sabe se voa ou se nada; o pássaro não sabe de nada. Os peixes não distinguem se voam ou se nadam. Analisando friamente os movimentos são os mesmos, o uso de asas-nadadeiras, o aproveitamento de correntes (de ar e de água) e a limitação ao pélago. Estes seres pelágicos, que flutuam no corpo da água ou no corpo do ar simplesmente se movem, ou melhor, o movimento é que se movimenta neles, como quis Pessoa. O avião e o submarino, ave-peixe artificial, também não tem consciência se voa ou se nada. Mas é certo que quando choram, os peixes choram lágrimas transparentes. Morcego não é pássaro, baleia não é peixe, golfinho não é peixe. É certo que uma ave-maria, um ave-césar não passarão. A diferença do aquário para a gaiola evidentemente é a água. Engaiolados, os pássaros cantam uma música triste. Aquarianos, os peixes choram.



Quando a gente acende a luz, pra onde vai a escuridão?




Lelê Teles, Brasília

e ela é tão linda

a linda Magdalena Smorczewska


A gente se conheceu por telefone. Eu esperava uma ligação no orelhão, de repente ela chegou pra ligar. Enquanto procurava o cartão na bolsa eu liguei pro orelhão e ela atendeu. Oi, eu disse. Hola, respondeu ela. Conoces el olor del rocío?, eu perguntei. Si, me queman los ojos escucharlo, ela falou com uma voz que me lembrava uma foto feita pelo Hubble: o nascimento de uma estrela. Escrevi meu nome numa pétala de rosa e dei pra ela. Ela sorriu e me disse que tinha meu nome tatuado no seu coração.



Dali fomos tomar banho de chuva. A nudez mais feliz que já vi banhar. Ela é da Polônia e tem uma singular elegância que não existe na sintaxe do caminhar das eslavas. Eu tive vontade de entrar no vestido dela e despir a sua alma. Tudo o que ela chorava sorria. Ora falávamos em espanhol, ora em francês. E os nossos olhos e olhares falavam numa linguagem que só o vento não conhece, porque o vento só conhece o movimento, e os nossos olhos se imantavam, vidrados.



Teci uma cachoeira com as lágrimas que sorriam em seu rosto e dei a ela de presente, assim como o sol dá luz ao mundo todo. Ela viu quanto interesse havia nesse meu gesto desinteressado. Falamos das florestas que temos dentro de nós, do efeito estufa e do calor que sentíamos subir pela nossa espinha dorsal quando nossas mãos se abraçavam. E também do degelo glacial que nos liquefazia. Falamos das queimadas que nos esfumaçam de paixão. Do tesão que é romper a sua camada de ozônio. Das neuroses de nossos neurônios, das Tsunamis.



Demos um beijinho de borboleta, o rímel dos cílios dela ciciaram nos meus mamilos. Depois um beijinho de esquimó. Eu me acolhi no seu iglu, uma luva de vulva. Depois um beijo de peixinhos. As escamas despidas nas camas... Enquanto eu lhe contava sobre o tantra ela me cantava um mantra, e acordados para o amor a gente dormia.



Ela é uma das criaturas mais lindas que brotaram no meu jardim. Todas as primaveras a gente poliniza. Ela me disse que Copérnico não propôs uma teoria científica, mas apenas compôs um poema, Galileu é que extraiu do poema o cálculo heliocêntrico e justamente por isso o mundo ficou mais bonito. Disse que Newton, ao descrever a gravidade, também propunha poesia. Até hoje não apareceu um cientista pra tornar científico o poema que ele fez. Explicar, por exemplo, o que é a gravidade. Isso ninguém explicou e isso seria ciência. A descrição de Newton é apenas um lindo poema, como o lusco-fusco, o crepúsculo, os arrebóis, o céu de Brasília ao entardecer quando o clima tá seco...



Achei tão lindo ouvir isso de uma flor cheia de pétalas. Toda vez que tento colhê-la ela se encolhe e me acolhe, toda vez que tento comê-la ela me escolhe. Eu adoro salada de flores, ela gosta de fotografias. Eu disse a ela que Os Dez Mandamentos foram a primeira fotografia (foton + grafia, a escrita com luz). A segunda foi o falso Santo Sudário, que é também uma foton-grafia. Ela se despetalou e, nua, pediu que eu a fotografasse. Eu a beijei com tanta ternura que até hoje ela tem gravado nos lábios o meu sorriso.



Agora, sempre que tá frio eu visto a minha musa e saio pra tomar banho de lua. Ela mora numa gruta que tenho no coração, todas as noites ela sai pra se banhar na cachoeira do meu pranto. Eu vivo de amor por ela.



Lelê Teles, Brasília.

carnaval, carne levare

OXUM

Carnaval deriva de carne levare
ou
adeus à carne.



ADEUS À CARNE
ou
À DEUSA CARNE

Lelê Teles, Brasília